Quem tenha estado atento aos últimos dias da política nacional não pode deixar de estar siderado com alguns dos sórdidos episódios que aconteceram.
A importante reflexão que Costa fez sobre o fim dos dias da abundância infinita parece ter deixado o PC e o BE particularmente incomodados ao ponto de, depois de terem aprovado na generalidade o fim da taxa especial dos combustíveis, às escondidas e na especialidade virem chumbar tal possibilidade que prometeram.
Tiveram, pois, a hipótese de, de moto próprio, fazer a tal devolução de rendimentos agora que a austeridade passou para os impostos indirectos, mas resolveram nada devolver e manter a escandalosa e iníqua sobretaxa para todos.
Curiosamente, enquanto dão a mão ao governo e vão taxando os combustíveis a preços de confisco, não desarmam na luta das suas clientelas com greves nas avaliações dos estudantes, nos hospitais e nos transportes, nesta espécie de relação com distúrbio bipolar a que vamos assistindo.
É assim, consumidas nestes jogos de alecrim e manjerona, do “combato-te na rua para te devolver nas comissões parlamentares”, que as esquerdas unidas nos brindaram – porventura como cortina de fumo para disfarçar tão indigesto prato – com uma nova iniciativa da velha e estafada luta da consagração dos condenados corruptos de esquerda à condição de presos políticos e heróis da liberdade.
É relativamente comum esperar-se desta decadente (e antigamente mais folclórica) esquerda tomadas de posição de grande e pungente violência cénica e moral, mas nem todas, ao contrário desta, são dignas de tão flagrante caso de vergonha alheia.
Quis a sorte, para este especial conspecto, que cerca de duas dezenas de senhores deputados, com vários dos suspeitos do costume, viessem à baila com mais uma iniciativa do anedotário luso–brasileiro. Lembraram-se as insignes personagens de redigir uma carta ao Supremo Tribunal brasileiro, não como simples deputados subscritores da mesma, mas muito mais genericamente referindo na carta “os deputados à Assembleia da República Portuguesa apelam ao Supremo Tribunal da Justiça Brasileiro (…)” para que o STJB repusesse aquelas que, na sua opinião, seriam “as condições mínimas aceitáveis de funcionamento do Estado de Direito no processo que atinge o Presidente Luís Inácio Lula da Silva”.
É muito curiosa e porventura pouco original – tema a que voltaremos – toda a construção feita pelos senhores deputados (que tentam pressionar uma tomada de posição de órgão de soberania de um Estado terceiro, na sua qualidade de deputados eleitos doutra nação, imiscuindo-se, assim, na aplicação da justiça, e falam em violações do Estado de direito e da separação de poderes), e mesmo admitindo que o arguido condenado pretenderá concorrer à presidência da República – e voltar a beneficiar de foro privilegiado –, referem-se-lhe desde logo como o presidente fulano.
Num sistema judicial onde são permitidos e exercidos os direitos aos recursos e onde, no mesmo processo, dezenas de outros arguidos estão também condenados, não parece aos senhores deputados de uma ligeireza inqualificável e de uma demagogia a roçar o acintoso esta acusação inevitável de que o STJ esteja de alguma forma a compactuar com agendas políticas e com o atropelo da lei pelas instâncias fora?
Estarão os panfletários deputados suficientemente instruídos sobre o que foi o Brasil durante a ditadura militar para virem acusar o STJ, em 2018, de manter e conspirar pela manutenção de presos políticos?
Será possível que, sem qualquer outra reclamação audível, estejam presos mais umas dezenas de arguidos condenados nos mesmos processos e que tal sirva apenas para impedir que Lula se candidate às eleições? Onde estão as reclamações consonantes dos demais presos igualmente inocentes?
Por fim, atentemos na substância das acusações que a carta dos senhores deputados faz: “O processo em que o Presidente Lula da Silva foi condenado não respeitou as mais elementares regras de um Estado de Direito. Foi gravemente cerceado o seu direito de defesa, com a desconsideração das provas e a recusa de diligências requeridas pelos seus advogados, e foi condenado por um juiz que publicita ostensivamente a sua oposição política a Lula da Silva, tornando evidente a sua falta de isenção para o julgar de forma imparcial.”
Por um momento, esta retórica que conclui factos e motivações pareceu-me muito próxima e repetida, e o juiz de que me lembrei, neste caso, não era o Sérgio Moro.
Por outro lado, e contrariamente ao que vem aí referido, vários são os sistemas legais (incluindo o português, após as últimas alterações) que vêem os arguidos a cumprir presos, porque condenados, os termos dos últimos recursos até ao trânsito em julgado final dos recursos ordinários e extraordinários. Por outro lado, em fase de recurso de condenações efectivas a que está condenado o recorrente, parece-me que o tema da presunção de inocência não se pode pôr da maneira proposta na referida carta, como se indício algum tivesse sido já julgado.
Portanto, não bastava ser inusitada a referida carta como também é juridicamente absurda e errada.
Por outro lado, um outro arguido português a quem Lula prefaciou importante obra científica, e que se reclama também herdeiro de uma actuação política de grande expansionismo e oportunidade, veio já referir que um processo de cariz eminentemente político, movido pela direita reaccionária, naturalmente sem provas e com graves violações dos seus direitos de arguido, serviu apenas para alimentar uma cabala e impedir a sua candidatura a Presidente da República.
A similitude dos percursos e dos argumentos independentemente dos arguidos é por demais evidente. A carta dos senhores deputados ao STJ ou as entrevistas do conhecido blogger cá e lá são do estrito domínio da fé e da ficção e, para além da habitual superficialidade, não trazem um facto concreto que permita, para além das atoardas e dos slogans, justificar todas as questões ligadas aos crimes económicos que mantêm presos muitos mais implicados a quem a ideia da agenda política não se aplica.
Aguardamos, por isso, com expectativa o dia em que uma carta chegará a exigir a libertação doutros presos políticos julgados por cá.
Advogado na norma8advogados
pf@norma8.pt
Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990