Nico ou ícone? Foi Andy Warhol quem encontrou nesse anagrama o nome ideal para o elemento feminino da banda de vanguarda Velvet Underground e que abrilhantou o disco “The Velvet Underground and Nico”, de 1967. Nico foi uma alma errante que nasceu nas vésperas da ii Guerra Mundial e viveu até às vésperas da queda do Muro de Berlim. Por isso mesmo, uma peça vital desse fantástico puzzle criativo.
Incontornável, angustiada e fora de tempo, Nico, ou Christa Päffgen, como foi registada, é recordada no biopic de Susanna Nicchiarelli, “Nico 1988”, a acompanhar o derradeiro período da vida da cantora, desaparecida precisamente nesse ano. Para esse papel maldito, encontrou o perfil adequado na dinamarquesa Trine Dyrholm. Uma entrega dorida que a ajuda a aproximar-nos da dependência de Nico com heroína e na complexidade da relação complicada com o filho, Ari, ou Christian Aaron Boulogne, fruto da sua ligação com de outro ícone chamado Alain Delon. Ela que não é estranha à música e até participou no festival da Eurovisão da Canção no seu tempo. Mas estes são outros tempos.
É precisamente por esse distanciamento aparente que “Nico 1988” resulta, tal como a entrega de Trine a esse período. “A minha vida começou depois dos Velvet Underground”, dirá a personagem, como que a exorcizar uma beleza e um passado feito à medida das tendências da época. “Foi o Jim Morrison quem me convenceu a escrever os meus sonhos”, recordará ainda. E talvez o sonho mais real terá sido vivido no período dos concertos em Praga, que o filme tão bem acompanha. Talvez o período em que Nico tenha sido mais feliz, como admitiu Trine Dyrholm na nossa entrevista.
A Nico é uma personagem incrível. Estava preparava para a interpretar?
Devo confessar que fiquei muito surpreendida quando a realizadora me ofereceu este papel. Mas ela lá teria as suas razões.
Imagino que a Susanna também já conhecesse o seu trabalho.
Ela enviou-me um email e veio ter comigo a Copenhaga. Foi ótimo porque fizemos logo clique. É claro que eu jamais recusaria esta personagem tão complexa, uma mulher incrível. Quanto estive aqui em Veneza com “Só Precisamos de Amor” (2012), ela falou-me nesse projeto; entretanto viu outras coisas e, claro, “A Comuna” (2016).
Ela sabia que conseguiria cantar, que já tinha esse background como cantora e que tinha gravado discos?
Sim, descobriu isso.
É verdade que já participou no Festival da Canção da Eurovisão?
Sim, em 1987 – na altura tinha eu 14 anos -, na Dinamarca.
Em que posição ficou, lembra-se?
Não cheguei às finais. Fiquei em numero três na Dinamarca. Sabe, ainda hoje é um grande sucesso. As crianças cantam essa música na escola. É verdade que tenho alguma experiência como cantora. Quando era adolescente fiz uma digressão com uma banda. Isso ajudou–me com este lado musical da Nico.
Pessoalmente, qual era a sua relação com a Nico, se é que tinha alguma?
Eu não sabia nada dela. Claro que conhecia algumas das músicas dos Velvet Underground e ligava-a a essa banda. Tinha também ouvido falar do Andy Warhol, mas não sabia muito mais sobre ela. No princípio, quando recebi a proposta, até achava que era uma americana de Nova Iorque, só depois percebi que era alemã. Entretanto fiz uma pesquisa sobre esse período.
Viu os concertos da Nico no YouTube?
Claro. Os concertos da Nico foram a minha inspiração para compor a personagem, isso e algumas entrevistas. Entretanto vi também o documentário “Nico Icon” (1995). Posteriormente trabalhei com as músicas, pois percebi que teríamos de criar a nossa própria versão, e não fazer uma imitação.
Porquê?
Isso seria um erro, pois a minha voz é um pouco mais baixa. Tive de a construir à minha maneira. Por isso foi nos temas musicais que trabalhámos mais, o que me ajudou a entrar na personagem e na música.
Encontrou algum elemento na personagem em que poderia dar algo mesmo seu?
Não sei, o que me agradou é que ela não era uma pessoa que gostava de agradar. Ela é bastante dura e às vezes até cruel. A Nico não se importava nada com o lado comercial e apenas queria fazer a sua arte. Por exemplo, odiava o facto de ser bonita. Há comentários dela sobre isso que são bastante interessantes.
Não foi ela que disse “não fui feliz quando me disseram que era bonita”?
Sim, ela disse isso.
Como tentou interiorizar esse lado dela e tornar-se até feia, às vezes?
Mas ela era feia por vezes, como eu sou feia – na verdade, como somos todos. Mas quando trabalho nunca sou vaidosa, pois a vaidade pode interferir com a nossa prestação. Se aceitamos a personagem, temos de ir até ao fim. E esta personagem em particular tem de ir até ao final. Por isso, quando nos vemos no ecrã, pode tornar-se até um choque.
Apesar de tudo, não deixava de ter o seu glamour…
É importante mostrar não apenas o glamour. Por isso não me esforcei muito para me parecer como ela. A Susanna disse que não queria esse esforço de imitação. Ela queria-me a mim.
Uma personagem híbrida, no fundo?
Tentámos criar uma pessoa que não é a Nico, mas que também é uma versão dela. Alguém que seja uma mulher, uma artista e uma mãe. Acho que ela lutou muito com o facto de ter sido uma filha da guerra. Ela nasceu mesmo antes da guerra e morreu mesmo antes da queda do Muro. No fundo, ela foi o espelho de todo esse período. Era bastante provocadora e contava várias histórias sobre o seu pai. Acho que, de certa forma, tinha vergonha de tudo isso, mas ao mesmo tempo era também um produto disso mesmo. A Nico debateu-se com imensos dilemas. Pelo menos, é esse o nosso ponto de vista. Por outro lado, lutou com a sua imagem de ícone, pois achava que não lhe servia. Sem dúvida. Eu sabia que era uma oferta que não poderia rejeitar.
O filho dela, Ari, foi outro elemento assinalado pelo filme. Até que ponto, no seu entender, o lado maternal afetou também a vida de Nico?
Ela era mãe, mas não era uma boa mãe. Li uma entrevista em que ela dizia que não se arrependia de nada. Mas depois completava dizendo que lamentava não ter tido mais tempo com o filho. E acrescenta ainda só lamentar “ter nascido mulher e não homem”. Isso foi muito inspirador para mim, no sentido em que ela não cabia no seu corpo. Talvez por ser demasiado objetivada pelos homens, pela sua beleza. Conhecemos vários retratos de estrelas rock masculinas, das drogas e das ressacas. Mas isso é outra coisa. Porque ela era uma mulher e essa imagem não era tão bem aceite.
Claro que havia a Janis Joplin, a Patti Smith…
Sim, claro, há alguns, mas essa não era claramente a regra. No caso dela o facto de ser uma mulher que abandonou o filho foi algo que a tornou mais amarga.
Foi corajoso da parte dela subir ao palco mais tarde e mostrar uma versão menos bonita dela, não acha?
Sim, ela quase parecia um protesto. Era óbvio que, no final, ela não queria parecer bonita. Destruiu-se totalmente com drogas e tudo o resto.
Tentou encontrar-se com o filho dela?
Não, não tentei, mas a Susanna conheceu-o. Fez uma longa entrevista com ele, o que ajudou bastante o guião. Eu, pessoalmente, não quis conhecê-lo. Acho que seria demasiado real. Gosto de me sentir inspirada pela realidade, mas não me esgoto aí para não limitar a imaginação. Talvez até fazer-nos sentir alguma culpa.
No fundo, esta é a sua Nico…
Sim, esta é a minha versão da Nico, a minha personagem.
Vai participar também no biopic de Astrid Lindgren (“Becoming Astrid”), apesar de não interpretar a Astrid. É um outro tipo de ícone. O que pode revelar-nos sobre esse projeto?
Só posso dizer que acho que vai ser um filme fantástico. O meu papel é pequeno, faço da dinamarquesa que toma conta da criança. A Alba August (a protagonista) é fantástica. Tenho as maiores expetativas sobre esse projeto.
Trabalhou aqui com outra realizadora (Pernille Fischer Christensen). Sente alguma diferença em relação aos homens?
Por acaso trabalhei com várias realizadoras. Não porque quisesse, mas simplesmente por não existirem assim tantas realizadoras. Já trabalhei com muitas dinamarquesas, o que já não é nada mau. Mas também com muitos realizadores. Não vejo grande diferença em relação aos realizadores. Não acho que mude nada, apenas acho importante que devemos ter mais realizadoras e papéis femininos complexos.
Qual acha que é o momento mais feliz no filme para a Nico?
Acho que deve ser o concerto em Praga, algo que a liberta e lhe permite de certa forma encontrar-se. É aí que encontra o público, a sua música. Está doente, mas toma também a decisão de se limpar. Esse é o grande momento de felicidade dela. Também quando está com o filho, Ari, mas também quando se confronta com o facto de ele não estar com ela. Nesse sentido, gosto muito da cena em que a mãe fuma um charro com o filho. Acho muito importante porque este é também um filme sobre a mãe e o seu filho, sobre a identidade e como encontrar o seu próprio caminho.
Fala em realidade e este é um biopic. Sentiu que a Susanna queria evitar esse lado mais documental?
A Susanna fez uma pesquisa muito grande e este período não é muito conhecido. É claro que ela também tinha muitos fãs, mas nem toda a gente sabe do concerto que fez com esta pequena banda. Ela entrevistou o filho e outras pessoas próximas dela na altura, nesse período de Praga. Essa parte é bastante fiel e muito realista também.