MOSCOVO – Há muitos anos, em Samarcanda, encontrei uma guia que se chamava Natalia. Nada de particularmente inusitado: na antiga URSS e na atual Rússia há tantas Natalia (Natacha) como príncipes nos livros de Dostoievski. Na brincadeira costumava sussurrar-lhe com voz cava: “Nathalie, uprajninié numer vosiem.” Era ridículo que chegue porque significava apenas lição número oito, resquícios das minhas aulas na Rua Pau da Bandeira. Ela levava a sério: “Não digas isso, recorda-me um namorado que tive em Paris.” E eu provocava: “Era o Gilbert Bécaud?”
Natalia talvez tivesse idade para ter andado ao colo de Bécaud, mas sem nenhuma malícia pelo meio. Quanto a mim, trauteava–lhe: “Et quand la chambre fut vide/ Tous les amis étaient partis/ Je suis resté seul avec mon guide/ Nathalie.”
Agora encontrei outra Natalia. Empregada de bar, gorduchinha como uma matrioska e com alma de matrioska: abre-se e há mais Natalias lá dentro, escondidas.
De cada vez que servia uma mesa, regressava ao balcão passando pelo piano. Sentava-se e tocava “Otchi Chórnié”, “Ne Speshi”, “Katioucha” ou “Kalinka”. Não sei se Natalia, no seu jeito risonho, entregava cervejas e vodcas e pratos com batatas fritas plena do mesmo entusiasmo que lhe saía dos dedos e da voz quando os seus olhos negros brilhavam ao cantar “Otchi chórnié/ Otchi zguchié/ Otchi strasnié e preskrasnié” (Olhos negros/ Olhos que queimam/ Olhos apaixonados e lindos), mas perguntei-lhe porque não deixava o raio do avental e se dedicava à música. Respondeu: “É demasiado tarde…”
Aí, sim, vi tristeza no espelho dos olhos que queimavam. Desmentindo o sorriso largo, muito branco. E lembrei-me de uma frase que li de Isabelle Adjani: “Rio-me muito, como todas as pessoas tristes…”