Bem sei que estamos no início do Mundial, pelo meio temos o calor a voltar e, claro, a conturbada revolução no Sporting – ingredientes mais do que suficientes para que, num país como o nosso, tudo o resto passe a ser acessório.
Mas mesmo os mais distraídos devem ter-se dado conta e assistido ao que considero a maior insensibilidade humana a ocidente. O mesmo Ocidente que aponta o dedo à Rússia, à China e a muitos países denominados menos desenvolvidos por crimes contra a humanidade e violações dos direitos humanos ignora o que se passa à sua porta. O mesmo Ocidente em que a maior potência abandona o Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Na Europa, a Itália negou a entrada de uma embarcação com cerca de 600 migrantes entre os quais estavam 123 menores, 11 crianças e sete mulheres grávidas. Nos EUA, uma organização não governamental expôs um vídeo de vozes de crianças a chorarem pelos pais, alegadamente captado num dos centros de detenção temporários situados na fronteira com o México.
Não acredito que se consiga ficar indiferente ao ver e ouvir as imagens destes dois episódios. São chocantes e revoltantes. Sobretudo o vídeo do centro de detenção nos EUA, que não tem imagens (o vídeo é totalmente negro) e em que apenas se ouve o som de desespero de crianças chorando pelos pais. São cerca de oito longos minutos de agonia e desespero que não podem deixar ninguém indiferente.
Ninguém, não, porque nem Matteo Salvini, ministro do Interior italiano, nem Kirstjen Nielsen, secretário da Segurança Interna dos EUA, se mostraram minimamente incomodados com estes episódios. Em comum têm uma linha populista que caracteriza as suas administrações e o mais preocupante é que encontram eco em muitos cantos da Europa e dos EUA.
É nisto que o Ocidente se está a tornar? O grande baluarte da defesa dos direitos humanos nega a entrada de migrantes e separa filhos e progenitores em campos de detenção?
Em sua defesa, o governo italiano aponta baterias ao “negócio da imigração”, não explicando muito bem o que isso significa e focando nesse fenómeno (que existe) a razão para pôr em risco vidas humanas. Já a administração americana usa estes argumentos para pressionar à construção do muro entre a fronteira do México e dos EUA.
É vergonhoso e triste. É vergonhoso porque fere de morte os principais valores ocidentais, os quais já foram em tempo a justificação para muitos protestos, intervenções e ingerências militares noutras paragens do mundo. É triste porque, particularmente nestes dois casos, temos um país que foi originário de milhões de emigrantes em tempos difíceis na Europa e outro país que cresceu à custa do suor e trabalho de milhões de imigrantes.
Mas lá está, temos Mundial, volta o calor e tudo parece atenuar-se. Mas os principais visados destes episódios não vão esquecer. Estamos a fabricar bombas-relógio de ódio e de rancor que, um dia, vão detonar.
A escalada de indiferença e protecionismo que temos vindo a observar, o galopante fosso entre ricos e pobres e a degradação das condições de vida na maioria dos países do hemisfério sul têm de ser travados.
Fechar fronteiras e impedir que homens e mulheres procurem melhores condições de vida não é a solução. Aplicar medidas avulsas e descoordenadas de pertença cooperação com esses países também não serve. Todos os anos se gastam rios de dinheiro em programas de cooperação que, na maioria dos casos, acabam em projetos estéreis, nas contas de empresas ocidentais que vendem os seus serviços ou a alimentar a corrupção.
O ponto a que chegámos requer ações concertadas e trabalhadas entre os dois lados do problema. Requer criar condições para erradicar os focos geradores da emigração, desenvolver programas específicos de migrantes que lhes devolvam a esperança de voltar aos países de origem. Voltarem com capacidade de criar valor, gerar emprego e riqueza que os fixe e ajude outros a quererem ficar.
Tal como os milhões de portugueses que povoaram o mundo sonharam, e sonham, um dia voltar a Portugal, estes migrantes não são diferentes. A insensibilidade populista ocidental não permite ver isto e, infelizmente, nenhum outro caminho que não seja o de fechar portas.
Escreve à quinta-feira