Viver com Dignidade


Aprovar a eutanásia antes, ou em alternativa, de uma aposta séria nos cuidados continuados e paliativos e em condições que permitam conceder aos doentes terminais que se encontram em grande sofrimento um final de vida condigno é uma capitulação irresponsável por parte do Estado. Uma desistência. 


A bem do debate, importa precisar o que está em discussão nos diversos projectos que pretendem “regulamentar” a eutanásia. Quem nunca os leu, fazia bem em perder uns minutos para os conhecer. Isto porque tem vindo a enraizar-se a ideia de que o que está em causa é a despenalização da prática da eutanásia, pondo-se todo o enfoque no exercício da liberdade individual. Bem lidos os projectos tem de concluir-se que assim não é. Eles visam muito mais do que a despenalização de uma conduta – a da eutanásia – ou a ampliação dos direitos ou liberdades individuais – o direito de morrer. O que os projectos pretendem é consagrar a possibilidade de, em determinadas circunstâncias, poder exigir-se que o Estado, em hospitais públicos e através dos seus profissionais de saúde, actue activamente no sentido de eliminar a vida de uma pessoa.

A perplexidade jurídica que o tema suscita resulta da constatação óbvia de que eliminar a vida de uma pessoa constitui, em termos objectivos, um homicídio. Ora, o artigo 24.º da Constituição, o primeiro dos artigos dedicados aos direitos, liberdades e garantas, é inequívoco. A vida humana é inviolável. Valeria a pena meditarmos na etiologia deste princípio, assumido como estruturante da nossa ordem jurídica. Todo o edifício normativo do nosso Estado de Direito assenta neste valor absoluto: o da dignidade da vida humana. Sendo aprovado qualquer dos projectos em discussão, a questão da inconstitucionalidade não deixará de ser suscitada e, com grande probabilidade, o diploma que deles resultar será declarado inconstitucional. Bom será recordar que os senhores deputados, os nossos representantes, não estão impedidos de alterar a Lei Fundamental, conquanto assumam poderes de revisão e congreguem em torno da proposta de alteração uma maioria qualificada de 2/3. Isso, pelos vistos, os deputados não querem fazer, propondo-se, antes, fazer passar uma lei que objectivamente atenta contra a inviolabilidade da vida humana por maioria simples.

Nos projectos em discussão, o exercício do direito de morrer é assegurado pelo Estado, pela mão dos profissionais de saúde. Esperar-se-ia, por isso, que fosse dado mais relevo às posições públicas tomadas a este respeito pela Ordem dos Enfermeiros e pela Ordem dos Médicos. Ambas rejeitam a eutanásia. O actual Bastonário da Ordem dos Médicos e os seus antecessores, de forma muito clara, fizeram saber que não estão dispostos a renunciar à sua deontologia profissional, que os impede de activamente ministrar a morte dos seus doentes. A função primordial dos médicos, dizem, é salvar vidas, cuidar, tratar de todos quantos precisam de cuidados e não, por mais ponderosos que possam ser os motivos, pôr termo a uma vida.

Também o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV,) órgão consultivo independente que tem por missão analisar os problemas éticos suscitados pelos progressos científicos nos domínios da biologia, da medicina ou da saúde em geral e das ciências da vida,  que funciona junto da AR, emitiu parecer contrário ao projecto do PAN (vale a pena lê-lo: http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1520844932_P%20101_CNECV_2018.pdf). Advertiu ainda a AR que os pareceres relativos aos projectos do PS, BE e PEV não estariam prontos antes do dia 29 de Maio (dia agendado para a votação dos quatro projectos legislativos). Ainda assim o processo avançou. É caso para perguntar qual a razão da pressa dos partidos, que os leva a dispensar estes pareceres e, mais importante, que importância dão ao CNECV…

Ao contrário do que possa pensar-se, a eutanásia não é admitida senão em meia dúzia de países. Muito recentemente, uma proposta que visava legalizar a eutanásia na Finlândia foi rejeitada por cerca de 70% dos deputados. Na Holanda, um dos primeiros países a legalizá-la, discute-se a forma como a medida que pretendia aplicar-se a casos extremos acabou por ser uma prática muito mais recorrente do que a inicialmente esperada. Aquilo que é apresentado como um avanço, um passo alegadamente progressista, pode ser apenas uma precipitação ou, como querem outros, um retrocesso civilizacional.

Certo é que aprovar a eutanásia antes, ou em alternativa, de uma aposta séria nos cuidados continuados e paliativos e em condições que permitam conceder aos doentes terminais que se encontram em grande sofrimento um final de vida condigno é uma capitulação irresponsável por parte do Estado. Uma desistência. Estaremos todos de acordo que esta é matéria muito delicada, sobre a qual existem muitas dúvidas e muito pouco consenso. Recomendaria a prudência que, antes de ponderar a eutanásia, que sempre teria de ser a última ratio, o legislador assumisse a obrigação de fazer chegar a todos aqueles que se vêem nestas situações limite cuidados que lhes permitam gozar de um fim de vida digno e sem sofrimento. A ausência de uma alternativa poderá empurrar as pessoas e até as suas famílias para uma decisão irreversível, colocando em causa a liberdade consciente que uma decisão destas, sem retorno, sempre exigiria.

É certo que há quem defenda a eutanásia por sentimentos de compaixão, como resposta a situações de sofrimento duradouro e insuportável. Por isso se fala em morrer com dignidade. Como se a vida, em si mesma, nas suas dificílimas circunstâncias, físicas, psicológicas, socias ou económicas, pudesse ser indigna. Como se ao Estado pudesse caber a tarefa de reconhecer a existência de vidas que, objectivamente, não merecem ser vividas. Como se fosse unívoco até o conceito de sofrimento insuportável. É evidente que a morte, antecipando o termo da vida, põe fim a qualquer sofrimento. Mas se o problema que queremos debelar é o sofrimento, a morte nunca poderá ser a solução. Aos olhos do Estado toda a vida deveria merece ser vivida. Tirar a vida não é solução para coisa nenhuma. Aquilo que nos deve mobilizar é permitir que todos possam viver, até ao fim, com toda a dignidade.

Nuno Pombo, jurista e docente universitário

Rui Tabarra e Castro, advogado

Viver com Dignidade


Aprovar a eutanásia antes, ou em alternativa, de uma aposta séria nos cuidados continuados e paliativos e em condições que permitam conceder aos doentes terminais que se encontram em grande sofrimento um final de vida condigno é uma capitulação irresponsável por parte do Estado. Uma desistência. 


A bem do debate, importa precisar o que está em discussão nos diversos projectos que pretendem “regulamentar” a eutanásia. Quem nunca os leu, fazia bem em perder uns minutos para os conhecer. Isto porque tem vindo a enraizar-se a ideia de que o que está em causa é a despenalização da prática da eutanásia, pondo-se todo o enfoque no exercício da liberdade individual. Bem lidos os projectos tem de concluir-se que assim não é. Eles visam muito mais do que a despenalização de uma conduta – a da eutanásia – ou a ampliação dos direitos ou liberdades individuais – o direito de morrer. O que os projectos pretendem é consagrar a possibilidade de, em determinadas circunstâncias, poder exigir-se que o Estado, em hospitais públicos e através dos seus profissionais de saúde, actue activamente no sentido de eliminar a vida de uma pessoa.

A perplexidade jurídica que o tema suscita resulta da constatação óbvia de que eliminar a vida de uma pessoa constitui, em termos objectivos, um homicídio. Ora, o artigo 24.º da Constituição, o primeiro dos artigos dedicados aos direitos, liberdades e garantas, é inequívoco. A vida humana é inviolável. Valeria a pena meditarmos na etiologia deste princípio, assumido como estruturante da nossa ordem jurídica. Todo o edifício normativo do nosso Estado de Direito assenta neste valor absoluto: o da dignidade da vida humana. Sendo aprovado qualquer dos projectos em discussão, a questão da inconstitucionalidade não deixará de ser suscitada e, com grande probabilidade, o diploma que deles resultar será declarado inconstitucional. Bom será recordar que os senhores deputados, os nossos representantes, não estão impedidos de alterar a Lei Fundamental, conquanto assumam poderes de revisão e congreguem em torno da proposta de alteração uma maioria qualificada de 2/3. Isso, pelos vistos, os deputados não querem fazer, propondo-se, antes, fazer passar uma lei que objectivamente atenta contra a inviolabilidade da vida humana por maioria simples.

Nos projectos em discussão, o exercício do direito de morrer é assegurado pelo Estado, pela mão dos profissionais de saúde. Esperar-se-ia, por isso, que fosse dado mais relevo às posições públicas tomadas a este respeito pela Ordem dos Enfermeiros e pela Ordem dos Médicos. Ambas rejeitam a eutanásia. O actual Bastonário da Ordem dos Médicos e os seus antecessores, de forma muito clara, fizeram saber que não estão dispostos a renunciar à sua deontologia profissional, que os impede de activamente ministrar a morte dos seus doentes. A função primordial dos médicos, dizem, é salvar vidas, cuidar, tratar de todos quantos precisam de cuidados e não, por mais ponderosos que possam ser os motivos, pôr termo a uma vida.

Também o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV,) órgão consultivo independente que tem por missão analisar os problemas éticos suscitados pelos progressos científicos nos domínios da biologia, da medicina ou da saúde em geral e das ciências da vida,  que funciona junto da AR, emitiu parecer contrário ao projecto do PAN (vale a pena lê-lo: http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1520844932_P%20101_CNECV_2018.pdf). Advertiu ainda a AR que os pareceres relativos aos projectos do PS, BE e PEV não estariam prontos antes do dia 29 de Maio (dia agendado para a votação dos quatro projectos legislativos). Ainda assim o processo avançou. É caso para perguntar qual a razão da pressa dos partidos, que os leva a dispensar estes pareceres e, mais importante, que importância dão ao CNECV…

Ao contrário do que possa pensar-se, a eutanásia não é admitida senão em meia dúzia de países. Muito recentemente, uma proposta que visava legalizar a eutanásia na Finlândia foi rejeitada por cerca de 70% dos deputados. Na Holanda, um dos primeiros países a legalizá-la, discute-se a forma como a medida que pretendia aplicar-se a casos extremos acabou por ser uma prática muito mais recorrente do que a inicialmente esperada. Aquilo que é apresentado como um avanço, um passo alegadamente progressista, pode ser apenas uma precipitação ou, como querem outros, um retrocesso civilizacional.

Certo é que aprovar a eutanásia antes, ou em alternativa, de uma aposta séria nos cuidados continuados e paliativos e em condições que permitam conceder aos doentes terminais que se encontram em grande sofrimento um final de vida condigno é uma capitulação irresponsável por parte do Estado. Uma desistência. Estaremos todos de acordo que esta é matéria muito delicada, sobre a qual existem muitas dúvidas e muito pouco consenso. Recomendaria a prudência que, antes de ponderar a eutanásia, que sempre teria de ser a última ratio, o legislador assumisse a obrigação de fazer chegar a todos aqueles que se vêem nestas situações limite cuidados que lhes permitam gozar de um fim de vida digno e sem sofrimento. A ausência de uma alternativa poderá empurrar as pessoas e até as suas famílias para uma decisão irreversível, colocando em causa a liberdade consciente que uma decisão destas, sem retorno, sempre exigiria.

É certo que há quem defenda a eutanásia por sentimentos de compaixão, como resposta a situações de sofrimento duradouro e insuportável. Por isso se fala em morrer com dignidade. Como se a vida, em si mesma, nas suas dificílimas circunstâncias, físicas, psicológicas, socias ou económicas, pudesse ser indigna. Como se ao Estado pudesse caber a tarefa de reconhecer a existência de vidas que, objectivamente, não merecem ser vividas. Como se fosse unívoco até o conceito de sofrimento insuportável. É evidente que a morte, antecipando o termo da vida, põe fim a qualquer sofrimento. Mas se o problema que queremos debelar é o sofrimento, a morte nunca poderá ser a solução. Aos olhos do Estado toda a vida deveria merece ser vivida. Tirar a vida não é solução para coisa nenhuma. Aquilo que nos deve mobilizar é permitir que todos possam viver, até ao fim, com toda a dignidade.

Nuno Pombo, jurista e docente universitário

Rui Tabarra e Castro, advogado