A morte politicamente assistida de Rui Rio


Rui Rio declarou-se favorável à eutanásia, o grupo parlamentar do PSD na Assembleia da República foi decisivo para o chumbo das propostas. Aliás, tão decisivo como o contributo dos deputados do Partido Comunista Português


O fervilhar parlamentar chumbou a consagração em letra de lei da eutanásia. Sendo a favor, sublinho a tradicional hipocrisia da invocação da falta de debate em vésperas de decisões em relação a um tema que paira sobre a sociedade portuguesa há já algum tempo. O que não paira é a realidade de um Serviço Nacional de Saúde que, entre passivos de desinvestimento acumulados e constrangimentos atuais de opções políticas de austeridade travestidas de outra coisa qualquer, impediu e impede que quem precisa tenha acesso a cuidados continuados e a cuidados paliativos. A cobertura nacional de cuidados continuados, que esteve muitos anos a marinar, está muito longe das efetivas necessidades do país – uma realidade agravada pelo envelhecimento da população e pela emergência crescente de situações oncológicas e degenerativas que nem as famílias nem as instituições têm competências para enfrentar. Agora que os projetos sobre a eutanásia estão arrumados para a legislatura, concentrem-se nos constrangimentos da folha de excel que tanto afetam o SNS.

Mas a votação no parlamento sublinhou uma realidade política ainda mais significativa do que o marcar passo do impulso civilizacional. É que estamos a assistir a uma espécie de morte política assistida de Rui Rio como líder do PSD. Como quase todas as personagens em que o valor facial é superior ao valor real, enleou-se num labirinto de contradições e opções que o projetaram para o limiar de uma inexistência política incompatível com a construção de uma alternativa política. E a questão é que para além de aparentar não ser defeito, mas feitio, está confrontado com uma realidade em que se transformou numa espécie de titular de toque de Midas invertido. Em tudo o que mexe, estraga.

Rui Rio declarou-se favorável à eutanásia, o grupo parlamentar do PSD na Assembleia da República foi decisivo para o chumbo das propostas. Aliás, tão decisivo como o contributo dos deputados do Partido Comunista Português.

Não é primeira vez que um grupo parlamentar é contravapor das opções de uma liderança política, sendo esta até do tipo de matérias em que, por regra, deverá existir liberdade de voto, por ter uma forte dimensão de consciência individual. E a questão reside mesmo na configuração do pessoal político em Portugal. Como o que mais conta é a ligação ao chefe partidário, em detrimento da ligação aos círculos eleitorais, à inserção social e à experiência de vida, se o chefe muda, nada muda até às eleições seguintes. Mais do que um compromisso com o pulsar democrático ou de orientação nos partidos políticos, o que conta é a ligação e, por vezes, sintonia com o chefe.

Mas se, por via da sua inabilidade e por impulso contrarrevolucionário do grupo parlamentar do PSD, estamos a assistir a uma espécie de morte assistida da alternativa política à atual solução governativa, o próprio Rui Rio também procurou dar um contributo para os sinais de pré-falência dos órgãos da solução governativa ao assinar com o governo acordos sobre a descentralização de competências de Lisboa para as autarquias locais e sobre o próximo quadro comunitário de apoios no horizonte 20/30.

A votação da eutanásia sublinhou ainda a força dos conservadorismos no parlamento e na sociedade portuguesa, com o Partido Comunista Português a desempenhar um papel decisivo a destruir ou a impedir transformações que não constem da cartilha ideológica.

Com o reiterado esplendor do toque de Midas invertido de Rui Rio e a insurgência parlamentar laranja, espera-se que existam redobrados cuidados na escolha das temáticas da agenda política. É que, se os apoiantes da solução governativa não disserem presente e for necessário algum apoio à direita, o mais certo é que o tema esteja votado a uma súbita eutanásia legislativa. Entretanto vamos assistindo à morte politicamente assistida de Rui Rio. Escolha da equipa, contradições, tiros ao lado e urticária parlamentar. Não está fácil a vida de mais um D. Sebastião da política portuguesa.

NOTAS FINAIS

Espasmo A reunião magna dos socialistas portugueses viveu de algumas ilusões. As notícias de mudanças no secretariado nacional, na permanente e no porta–voz nada tinham a ver com o evento, só serão concretizadas na primeira reunião dos novos órgãos. A discussão entre esquerda e centro é ilusão quando o que apenas conta é a sobrevivência política do protagonista maior que, graças aos acordos com Rui Rio, tem toda uma gama de escapatória para o eventual falhanço da maioria absoluta. Já foi assim com a derrota de 2015, o que não será com uma vitória “poucochinha” em 2019.

Anestesia O governo, através do Ambiente, levou dois anos a iniciar as obras de reparação do dique do mouchão da Póvoa, no rio Tejo. É um exemplo maior de incompetência e de falência do Estado na defesa do património ambiental. A dimensão da alegre letargia é a destruição do equilíbrio ambiental do mouchão, para sempre contaminado com água com teor de sal.

Sopro no coração Um país que, entre 2010 e 2018, perde 17 267 enfermeiros e médicos para emigração é uma nação que está a habituar-se a ruturas em funções fundamentais do Estado. E não se trata apenas de uma questão troikiana: entre 2015 e 2018 emigraram 3108 enfermeiros e 478 médicos, segundo dados das respetivas ordens.

 

Escreve à quinta-feira