Não passa um dia sem que alguém se demita de um cargo importante, seja por falta de meios, seja por motivos pessoais, seja por acusações fundamentadas ou inventadas, seja por divergências políticas.
Também não passa um dia sem que se veja o aparelho do Estado ser invadido por gente afeta à geringonça que, por sua vez, substitui outra ligada ao PSD ou ao CDS, os quais, reconheça-se, tinham critérios menos politizados, não sendo raros os casos em que recrutavam gente fora do seu espaço, sem que os currículos o justificassem. Coisas da política ou dos negócios.
Também não passa uma semana sem que se saiba de um novo caso de suposta corrupção ou se veja desenterrar um assunto antigo que nunca se resolveu (como o das PPP). Há ainda, sistematicamente, ecos de problemas resultantes de incúrias manifestas, como as que envolvem o que se passa na Proteção Civil, entre falta de planeamento e de contratações rigorosas e habilitações inflacionadas de dirigentes.
Quando olhamos para a saúde temos de nos arrepiar com notícias como as das crianças de oncologia do S. João no Porto ou as de que há hospitais onde já se constituem impensáveis listas de espera para tratamento do cancro – isto para citar apenas dois casos recentes.
Na segurança pública temos falhas sistemáticas. A GNR e a PSP não se entendem e, sobretudo, não conseguem acudir a quem precisa por falta de gente e de meios, enquanto as polícias municipais vivem, anafadas, a vigiar obras, sendo financiadas pelas empresas de estacionamento e por serviços gratificados. Um escândalo!
No quadro da defesa sabe-se que as Forças Armadas estão sem meios, mas os militares permanecem calados, demonstrando uma disciplina notável e um raro sentido do dever. Nos serviços secretos só se sabe que não há meios.
Na justiça há absurdos, como uma procuradoria a tentar boicotar as relações com Angola, em desrespeito da lei, até que o Tribunal da Relação veio repor a legalidade constitucional. Simultaneamente, a lentidão dos processos na área cível é um entrave à vinda de empresas de grande dimensão.
Não faltam, por outro lado, casos sociais graves por todo o lado, como as adoções da IURD, as Raríssimas deste país, os bancos públicos e privados cheios que consumiram economias de vida e que já nos custaram mais de 25 mil milhões, quantia que pode crescer se houver crise no Montepio, esperando-se que o definhamento dos CTT não traga problemas inesperados.
Nos negócios (sejam públicos ou privados), a opacidade também é quase total. Ninguém percebe como é que certos concursos são adjudicados e muitas obras contratadas, enquanto as leis continuam, na prática, a ser feitas à medida por escritórios de advogados.
As assimetrias territoriais são enormes e tardam soluções, através da canalização de investimentos do Estado e da criação de incentivos fiscais permanentes e irrevogáveis.
Somos donos de um mar imenso, mas não temos uma política para ele digna desse nome. Confundimos mar com pesca ou com os novos desportos náuticos que descobrimos graças à capacidade de um grupo de jovens empresários que nos trouxeram milhares de milhões. Tirando isso e o turismo, a economia do Atlântico é praticamente nula. Não conseguimos ainda ter uma política de portos efetiva, consensualizada e completada por uma ferrovia racional.
Temos a Madeira e os Açores, que são tesouros mundiais e pontos de orgulho. São regiões que desvalorizamos em termos culturais e mediáticos, nomeadamente nos órgãos de comunicação social públicos. O desenvolvimento que estão a ter é notável, mas veremos se não terá tendência para afastar os arquipélagos de um continente que não os envolve.
Temos uma diáspora enorme, mas achamos, até no slogan da seleção, que somos só 11 milhões, o que é uma pura patetice redutora.
Temos uma das línguas mais faladas do mundo, que envolve um volume de negócios absolutamente brutal. Apesar disso, a CPLP é um potencial que estamos a desperdiçar todos os dias, por falta de uma estratégia de Estado que (ainda bem) é substituída por impulsos da sociedade civil.
Neste retrato é impossível ignorar o futebol, que está podre depois de ter sido a nossa melhor carta de apresentação ao mundo. Tem-se safado a seleção, graças aos seus craques e ao super Ronaldo, quase todos eles radicados no exterior. Ao nível dos clubes, são vergonhosas as guerras e as práticas instaladas.
Todos concordamos que este estado de coisas tem de mudar, mas não muda. Em Portugal não temos os problemas internos de outros países porque somos homogéneos culturalmente, porque somos menos e porque temos paz. Temos políticos de topo cá e lá fora, a começar por Marcelo e por Guterres, que têm grandes capacidades. Temos trunfos de localização que compensam largamente os problemas de periferia. Temos uma base notável, mas falta-nos a vontade ou a educação coletiva para a procura do bem comum como desígnio de uma cidadania responsável. No atual ciclo positivo e estável, melhorámos bastante. Mostrámos ao mundo que somos um país cheio de capacidades que sabe fazer coisas complexas e consegue reerguer-se. Mas, realmente, não estamos a aproveitar em pleno esta oportunidade efémera. A culpa não é de ninguém especialmente. É de todos. É o jogo coletivo que nos falha.
Jornalista