Há duas semanas, elenquei as traves-mestras da estratégia do PSD de Rui Rio para combater o tranquilo caminho de António Costa até à vitória nas legislativas. Uma delas é a de que, a partir do momento em que a actuação de Manuel Pinho como Ministro da Economia veio para a agenda judiciário-mediática, não pode mais deixar de ser protagonizada: “a rentabilização dos processos judiciais que envolvem o poder socialista, nomeadamente os que envolvem a falência de um sistema bancário fortemente politizado na concessão de crédito e no alimento de uma alegada rede de beneficiários com conexões políticas”; “estão aqui os anos de 2005 até ao fim de Sócrates (onde Costa também está) e à austeridade, com temas que queimam muito e (…) não vão deixar de estar na agenda no enquadramento inevitável do fantasma da bancarrota.” Confirmou-se ontem no debate parlamentar com o primeiro-ministro. A partir de agora todos os palcos serão oportunidade para reavivar o debate, agora que o PS deixou cair Sócrates e Sócrates se libertou da militância no PS.
Digamos que essa será a “gestão corrente” da exploração política. Mas disso não passará se os adversários partidários do PS não compreenderam que só poderão fazer a diferença se forem para o topo da pirâmide. E disso não passará se o PS não for obrigado a compreender que não basta circunscrever os danos a vícios de conduta personalizados e alheios à generalização de um tempo político. O debate poderá ter consequências se, no vértice do debate, se desvendar quais os princípios de actuação governativa que devem ser inalienáveis, inelutáveis e insuperáveis: transparência (que não obsta à confidencialidade essencial para a tomada de decisões), integridade na gestão das matérias (que não impede o contacto com os interesses privados, sem que estes capturem o interesse público), independência no exercício dos cargos (o que não exige que, antes ou depois, os agentes políticos não tivessem ou deixem de ter vida profissional e empresarial), probidade no tratamento da coisa pública (sem que o rigor incomode a capacidade de empreendimento e, até, de influência em nome do interesse colectivo). Por outras palavras: não há pureza bacteriológica na política, mas há valores que, se corrompidos, fazem terminar a ligação de confiança que sustenta a própria democracia. É neste campo que, desde o início, Rui Rio se quis colocar e não se estranha que nele tenha sofrido os primeiros ataques sérios. É nesta oportunidade de clarificação, de renovação, de auto-regulação, de autonomização e de credibilização que se vai jogar um dos principais tabuleiros da luta até às legislativas. Só assim se fundamenta a mudança do PS e dos seus protagonistas e o alinhamento de um discurso que nunca se ouviu desde a primeira hora. O risco de um governo em fim de mandato ser arrastado para uma “judicialização” de práticas e comportamentos, com alguns dos seus mais relevantes ao barulho, era e é suficientemente previsível para não ser desde já resolvido. O PS resolveu tirar os esqueletos do armário e deitá-los todos fora.
Falta saber se o grande risco ainda está para vir. Se Rio quis “acordos de regime” para retirar o PS da envolvência dos partidos da esquerda, minimizando-se, também os pode ter querido para confrontar o PS com a apreciação dos anos de Sócrates, maximizando-se. Se propuser uma agenda forte para consenso no exercício e fiscalização dos cargos políticos e se tal for recusado, no todo ou em parte, pelo PS, então estará encontrada a diferença de cultura de poder que Rio procurava. E o “jackpot” para encostar o PS ao alegado “passado” que, a confirmar-se, Costa já apelidou de “desonroso”. Nessa altura poderemos ter o jogo de xadrez que apenas se está agora a preparar…
Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto.
Escreve à quinta-feira