Crónica sobre a epidemia de vergonha


Esta apostasia do PS da sua figura antes muito dilecta, em contraste com o silêncio cúmplice subsequente à dedução da acusação, é desastrada e um exercício de inacreditável oportunismo, populismo e cinismo póstumo


No ar, para quem ainda tem a capacidade de alguma surpresa com as politiquices cá do burgo, paira um estranho cheiro a tramóia. 

Neste dias que passaram, subsequentes à massiva divulgação dos vídeos das inquirições de testemunhas e dos interrogatórios dos arguidos da Operação Marquês, o PS entrou em delírio introspectivo e decidiu, por alguma razão que não é clara, finalmente cortar a sua ligação a José Sócrates, e este também ao agora embaraçado PS.
Para além da divulgação dos referidos vídeos dos interrogatórios e do adensar de suspeitas sobre o complemento remuneratório que, ao que parece, o GES fazia o favor de dar a Manuel Pinho, nada, num longo passado de casos mais ou menos publicitados que perseguem José Sócrates desde os longínquos tempos da secretaria de Estado do Ambiente e de todo um percurso de ostentação e luxo à custa, segundo o próprio, dos tempos do volfrâmio do avô, permitiria neste momento legitimar a estranha sensação de superveniente lepra e condição de intocável que desabou subitamente sobre José Sócrates.

Dir-se-ia aliás que, objectivamente, esta apostasia do PS da sua figura antes muito dilecta, em momento coincidente com a revelação dos vídeos, e em contraste com o silêncio cúmplice subsequente à dedução da acusação (peça cuja publicidade não oferece dúvidas), é, do ponto de vista formal, algo desastrada, e no que se refere à reflexão autocrítica, um exercício de inacreditável dislate, oportunismo, populismo e cinismo póstumo.

José Sócrates não é hoje menos culpado ou inocente do que era quando da sua detenção no aeroporto de Lisboa; da sua prisão preventiva em Évora; das sucessivas medidas de coacção até ao acórdão Rangel; das dezenas de recursos perdidos; ou da acusação (que se jurava não ir acontecer) que o MP, afinal, sempre deduziu, etc… 

É, por isso, intrigante saber-se qual é, afinal, a razão pela qual personagens que habitam sem receio nem pudor os meandros do relativismo ético do poder político, como Carlos César, anos depois de um infindável rol de iguais evidências de igual sinal, decidem rasgar as vestes pela ética republicana e desagravo moral, num expurgo de “vergonhas” várias que vêem em Sócrates, mas lhes escapam muito mais perto.

Por que razão, perguntam-se muitos, estes novéis paladinos da transparência – não fazendo caso do óbvio ridículo da falta de sentido crítico sobre as manchas dos seus próprios percursos – decidem esta tentativa de moralização do regime, e do alto das suas enormes (julgam eles) superioridades morais (?) atiram-se sem piedade nem memória ao homem a quem, durante os últimos vários anos, entenderam só a justiça poder julgar?

Terá tido o caso Pinho o poder para, sozinho, acordar a moral relativista e dormente que nos últimos anos vem fazendo escola no meio do PS? Ou será que, nesta farsa, aquilo que não vem dito é muito mais importante do que aquilo que Costa, César e os muitos mais que só agora começam a demarcar-se pretendem que não se saiba nem se associe?
Por que razão a condenação mediática de José Sócrates que sempre recusaram passou a ser legítima e aquilo que é dos tribunais, afinal, já cabe no discurso oficial do topo do partido, que passou (sem nenhuma alteração objectiva dos factos) a dever condenar sem precisar do tal prévio julgamento?

Nesta coluna, quando referi que a divulgação dos vídeos das diligências era uma violação intolerável dos direitos dos arguidos e uma prova inequívoca da falência de algum Estado de direito, nunca imaginei que os partidos que fazem parte do próprio edifício desse Estado fossem tão lestos a provar que não me enganei.

Sem esquecer, já agora, a loucura delirante da senhora ministra da Justiça, que apenas encontra morosidade da justiça – na senda dos comentários do PR – nos processos de investigação da corrupção e mais nenhuns, e que está ao mesmo nível da repetida (mas muito desmentida) ideia de que não houve cativações na saúde e que os impostos não estão a subir – ou seja, no domínio da ficção.

Temos pois que, neste mundo onde a pós-verdade é o momento, não se consegue fugir à ideia recorrente de que a imolação preventiva de Sócrates que o PS está a fazer, muito mais que um expiar de vergonhas (que verdadeiramente ninguém, a não ser Ana Gomes, tem), é uma manobra política cujos contornos e alcance e necessidade de higienização ainda não são de todo claros… Mas genuína vergonha não será certamente! 

Advogado na norma8advogados
pf@norma8.pt 
Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


Crónica sobre a epidemia de vergonha


Esta apostasia do PS da sua figura antes muito dilecta, em contraste com o silêncio cúmplice subsequente à dedução da acusação, é desastrada e um exercício de inacreditável oportunismo, populismo e cinismo póstumo


No ar, para quem ainda tem a capacidade de alguma surpresa com as politiquices cá do burgo, paira um estranho cheiro a tramóia. 

Neste dias que passaram, subsequentes à massiva divulgação dos vídeos das inquirições de testemunhas e dos interrogatórios dos arguidos da Operação Marquês, o PS entrou em delírio introspectivo e decidiu, por alguma razão que não é clara, finalmente cortar a sua ligação a José Sócrates, e este também ao agora embaraçado PS.
Para além da divulgação dos referidos vídeos dos interrogatórios e do adensar de suspeitas sobre o complemento remuneratório que, ao que parece, o GES fazia o favor de dar a Manuel Pinho, nada, num longo passado de casos mais ou menos publicitados que perseguem José Sócrates desde os longínquos tempos da secretaria de Estado do Ambiente e de todo um percurso de ostentação e luxo à custa, segundo o próprio, dos tempos do volfrâmio do avô, permitiria neste momento legitimar a estranha sensação de superveniente lepra e condição de intocável que desabou subitamente sobre José Sócrates.

Dir-se-ia aliás que, objectivamente, esta apostasia do PS da sua figura antes muito dilecta, em momento coincidente com a revelação dos vídeos, e em contraste com o silêncio cúmplice subsequente à dedução da acusação (peça cuja publicidade não oferece dúvidas), é, do ponto de vista formal, algo desastrada, e no que se refere à reflexão autocrítica, um exercício de inacreditável dislate, oportunismo, populismo e cinismo póstumo.

José Sócrates não é hoje menos culpado ou inocente do que era quando da sua detenção no aeroporto de Lisboa; da sua prisão preventiva em Évora; das sucessivas medidas de coacção até ao acórdão Rangel; das dezenas de recursos perdidos; ou da acusação (que se jurava não ir acontecer) que o MP, afinal, sempre deduziu, etc… 

É, por isso, intrigante saber-se qual é, afinal, a razão pela qual personagens que habitam sem receio nem pudor os meandros do relativismo ético do poder político, como Carlos César, anos depois de um infindável rol de iguais evidências de igual sinal, decidem rasgar as vestes pela ética republicana e desagravo moral, num expurgo de “vergonhas” várias que vêem em Sócrates, mas lhes escapam muito mais perto.

Por que razão, perguntam-se muitos, estes novéis paladinos da transparência – não fazendo caso do óbvio ridículo da falta de sentido crítico sobre as manchas dos seus próprios percursos – decidem esta tentativa de moralização do regime, e do alto das suas enormes (julgam eles) superioridades morais (?) atiram-se sem piedade nem memória ao homem a quem, durante os últimos vários anos, entenderam só a justiça poder julgar?

Terá tido o caso Pinho o poder para, sozinho, acordar a moral relativista e dormente que nos últimos anos vem fazendo escola no meio do PS? Ou será que, nesta farsa, aquilo que não vem dito é muito mais importante do que aquilo que Costa, César e os muitos mais que só agora começam a demarcar-se pretendem que não se saiba nem se associe?
Por que razão a condenação mediática de José Sócrates que sempre recusaram passou a ser legítima e aquilo que é dos tribunais, afinal, já cabe no discurso oficial do topo do partido, que passou (sem nenhuma alteração objectiva dos factos) a dever condenar sem precisar do tal prévio julgamento?

Nesta coluna, quando referi que a divulgação dos vídeos das diligências era uma violação intolerável dos direitos dos arguidos e uma prova inequívoca da falência de algum Estado de direito, nunca imaginei que os partidos que fazem parte do próprio edifício desse Estado fossem tão lestos a provar que não me enganei.

Sem esquecer, já agora, a loucura delirante da senhora ministra da Justiça, que apenas encontra morosidade da justiça – na senda dos comentários do PR – nos processos de investigação da corrupção e mais nenhuns, e que está ao mesmo nível da repetida (mas muito desmentida) ideia de que não houve cativações na saúde e que os impostos não estão a subir – ou seja, no domínio da ficção.

Temos pois que, neste mundo onde a pós-verdade é o momento, não se consegue fugir à ideia recorrente de que a imolação preventiva de Sócrates que o PS está a fazer, muito mais que um expiar de vergonhas (que verdadeiramente ninguém, a não ser Ana Gomes, tem), é uma manobra política cujos contornos e alcance e necessidade de higienização ainda não são de todo claros… Mas genuína vergonha não será certamente! 

Advogado na norma8advogados
pf@norma8.pt 
Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990