E, de repente, tudo muda…


Marcelo condicionou uma recandidatura à não repetição da tragédia do verão passado. Optou por se pôr em causa, mas obviamente que tem Costa na mira se as coisas correrem mal. Foi uma forma subtil de advertência


1. Foi importante e inesperada pelo conteúdo a entrevista que o Presidente da República (PR) deu à Renascença (RR) e ao Público. O Presidente condicionou uma recandidatura à não repetição de uma tragédia como a dos incêndios do ano passado. O PR associou, assim, o seu destino a algo que depende do governo, mas não disse de forma explícita o que naturalmente se esperava dele enquanto chefe de Estado, ou seja, se demite Costa se houver novo cenário catastrófico neste verão – o que não seria de estranhar face à confusão que já reina entre demissões de quatro comandantes da Proteção Civil e o caso dos helicópteros que vão acabar por ser contratados por ajuste direto, portanto, substancialmente mais caros. As afirmações de Marcelo sobre si próprio encerram, porém, uma implícita ameaça a Costa, porque seria absurdo que o chefe de Estado não corresse com o governo se houvesse outro verão devastador. A questão que se pode colocar é a definição do que é uma tragédia. É só morte de pessoas ou também conta a área ardida? Não foi certamente por acaso que o critério ficou por definir. Mas Costa que se cuide porque Marcelo não lhe vai fazer a vida fácil neste verão.

2. Através da citada entrevista ficou, entretanto, definitivamente claro que Marcelo convoca eleições se não houver Orçamento do Estado (OE) aprovado até ao fim do ano. O recado é para António Costa, para Centeno e para os partidos parlamentares que tenham capacidade de fazer passar o OE, o que envolve os da geringonça, o PSD e, em certa medida, o CDS. Todos ficam confrontados com as suas responsabilidades políticas. Marcelo não deixará de recorrer à bomba atómica da dissolução da assembleia se não houver acordo, tendo ainda por cima afirmado que era difícil que legislativas antecipadas coincidissem com as europeias de 2019. Cortou assim as vasas a alguns estrategos do PSD e do CDS que adorariam esse cenário, considerando–o o mais desvantajoso de todos para António Costa.

3. À RR e “Público”, o Presidente falou ainda dos tempos da justiça, dos média e da política. É um tema essencial porque uma justiça lenta só favorece os culpados e destrói a vida de inocentes ou de arguidos de coisas de pouca importância. Ainda agora se poderá estar a ver isso com a divulgação de notícias que levaram à demissão do presidente da ADSE, Carlos Baptista. Uma televisão e um diário pegaram numa auditoria com mais de dez anos, feita sem contraditório, sobre o tempo em que Baptista foi gestor da ACS, uma empresa de saúde da PT. A auditoria detetou algumas irregularidades menores (provocadas por um terceiro do qual era sócio inativo numa pequena empresa) que o gestor assumiu e resolveu com a PT-ACS, da qual saiu a bem. Anos passados, alguém diligentemente fez chegar o relatório à comunicação social. Baptista demitiu-se na hora da ADSE, onde fazia excelente trabalho. As razões de fundo para o terem atacado são óbvias: a ADSE está a apertar com certos fornecedores e abusos. Há, portanto, quem arrisque deixar de ganhar milhões. Ora, para os defender, nada como usar os média e/ou a política, recorrendo a questões passadas, fechadas e esclarecidas para tirar gente incómoda do caminho. Quando e se o tempo da justiça repuser a veracidade dos factos, já ninguém se lembrará da história. Alguns protagonistas até poderão já ter morrido. Tem toda a razão o Presidente Marcelo em procurar reformar certas coisas. O problema é que não vai conseguir, por mais que se esforce. É que os interesses para que tudo fique como está são muito superiores aos reformistas.

4. António José Seguro, o ex-líder do PS, é praticamente o único socialista que pode gabar-se de não se ter misturado com Sócrates como governante ou, depois disso, defendendo o modo de vida absolutamente impróprio que mantinha o ex-chefe de governo. Desde sempre, Seguro tem tido atitudes que o distinguem pela positiva. Uma delas é o recato a que se remeteu, tanto em relação a Sócrates como em relação a António Costa, que o derrubou de forma não linear. Seria fácil para Seguro vir a público enterrar ainda mais Sócrates e mesmo Pinho, ou então criticar os vira-casacas que nesta altura nasceram como cogumelos no PS e na comunicação social, repudiando Sócrates, que andaram anos a bajular ou a comer-lhe à mão ou em faustosas mesas, hotéis e não só. Quando se confrontou com António Costa e viu que as tropas do adversário eram sensivelmente as mesmas que as de Sócrates, Seguro demarcou-se de um PS que qualificou como sendo dos negócios. Está visto que conhecia bem certos protagonistas, alguns dos quais estão agora novamente no governo e fazem com Costa o mesmo papel de cães de fila a que se prestavam com Sócrates. Como acreditar que quem intensamente conviveu com Sócrates na sua esfera privada (fosse gente da política, da comunicação, amigos ou namoradas) mesmo no tempo de primeiro- -ministro não estranhasse o nível de vida milionário que ele tinha? Lá diz o povo: quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vêm.

 

Jornalista