Os dias do festival


Para além de um culto a merecer estudo sociológico, a política esteve sempre presente no festival, mesmo que o regulamento seja claro na distinção entre o que é a música e a intervenção política


Não há dias como estes! É o que pensam os fãs da Eurovisão, que os preparam com um ano de antecedência. Destes dias também ficam muitas histórias que são o legado de centenas de horas de televisão ao vivo e da participação de quase meia centena de países em comunhão competitiva e de milhões de turistas e operacionais, num evento que fala de canções, mas está muito para além delas.

Neste ano, em Lisboa, perfazem-se 50 representações de Portugal na Eurovisão, curiosamente.

Até à vitória, Portugal nunca se manifestou com propostas suficientemente distintivas. Desfolhou páginas de poesia e ferrou bandarilhas de esperança. Cantou o adeus e a festa da vida com Portugal no coração. E não chegou um grande amor nem a lusitana paixão para chamar a música ao nosso país. Será que estamos sempre destinados a precisar de um salvador da pátria?

O Salvador Sobral deu à RTP a responsabilidade nunca por ela imaginada e querida. E passou a fazer parte da História.

O Festival Eurovisão da Canção é uma fonte de criatividade, mas também de aplauso ou crítica corrosiva, de factos históricos e de figuras alucinantes – uma festa animada por milhares de fãs que se deslocam, anualmente, ao país anfitrião. Entre eles há uma cultura estabelecida que alimenta o certame de consumidores e de público ao vivo. Mais de 1500 canções concorreram até à data, o que daria 75 horas a ouvi-las continuamente. Há quem o fizesse, estou certo, dado o entusiasmo dos fãs por todo o mundo, que consomem o festival quase como o tema principal das suas vidas. Todos os anos, para além de quem o vê ao vivo, são 200 milhões de espetadores que assistem aos espetáculos pela televisão e internet, mais ou menos crentes nesta realidade competitiva.

Para além desse culto, a merecer estudo sociológico, a política esteve sempre presente no festival, mesmo que o regulamento seja claro na desejável distinção entre o que é a música e a intervenção política. Lembro que o festival começou com sete países, em 1956, e, após o desmembramento da União Soviética, o crescente interesse dos países do leste alterou a geografia do certame e a exigência competitiva, assim como pôs em relevo a componente política. Até a nossa primeira participação motivou o protesto contra a política de Oliveira Salazar.

Portugal juntou-se à família eurovisiva nesse ano de 1964 e deteve o recorde de mais participações sem vencer, até à obra-prima que, em 2017, amou por todos os concorrentes que o antecederam e também pela televisão pública portuguesa, que nunca enfrentou isto como um desafio ganhador, mas sim para cumprir calendário ou atingir a melhor classificação de sempre, portanto, sem que houvesse uma estratégia para trazer esta realização para Portugal.

Na primeira história analítica e enciclopédica editada em Portugal sobre este fenómeno (“Portugal 12 Pts – Festival da Canção”, de João Carlos Callixto e Jorge Mangorrinha, Âncora Editora, 2018) defendo que a perspetiva portuguesa não se alterou muito desde os primeiros anos de cantigas. A promoção de Portugal no estrangeiro sempre foi difícil ou ausente, embora algumas canções tivessem feito despertar as atenções lá fora. Mas nada mais do que isso. Mesmo que nalguns anos a vitória fosse possível, a pontuação não foi correspondente, porque algo mais havia a complicar as contas. Isto até ao passado ano, em Kiev, onde a RTP se viu confrontada com um acolhimento fora da escala habitual. O facto de nunca antes termos vencido foi um ponto forte para a vitória, como sempre o afirmei, e não uma fragilidade. É de admitir a vontade de diversificar as cidades-sede, mas faltava a Portugal uma canção e um intérprete diferenciados. Aconteceu. E aqui estamos, em Lisboa.

Os dias do festival fazem agora desta cidade o centro das atenções.

A capital portuguesa vê a sua hotelaria com a lotação esgotada e os últimos quartos disponíveis a preços proibitivos. Há uma dinâmica parecida com os últimos dias da Expo’98, em que quase nos faltava o tempo para respirar, mas hoje há uma cidade bem diferente, na sua oferta turística, designadamente. Em 1998, tudo ficou concluído, inclusivamente o Pavilhão Atlântico que, se não fosse construído, Lisboa não teria as condições perfeitas de palco para, 20 anos depois, receber o maior evento musical e televisionado do mundo. Nesses anos foi preciso ter gente a ver mais longe do que o nosso espaço e o nosso tempo, e os gastos enormes que foram realizados devem ser vistos também como investimento. Mas há que não esquecer que esses gastos foram essencialmente públicos, pelo que a contratação da cedência do espaço principal (Altice Arena) para a realização do evento eurovisivo, com um valor estimado de 2 042 000 euros, merece dúvidas, dado que este foi um equipamento construído com fundos públicos e rentável até que foi vendido a um privado.

O que importa também é saber que os responsáveis portugueses pela organização do festival estão a ser conduzidos pela experiência dos “mestres” da Eurovisão e isso ajuda a que possamos estar na presença de um investimento com resultados positivos para a RTP, para a cidade de Lisboa e para o país.

Então, o que é que destes dias pode ficar como legado?

Desde logo, uma enorme visibilidade, com impactos futuros, através de quem televisiona e de quem se desloca a Portugal, como os jornalistas, os membros das delegações e os fãs – os “Postais de Portugal”, gravados por todos os países concorrentes, mostram um país diverso e convidativo, e os dias da semanas eurovisiva prestam-se à celebração de uma ideia de convergência, através das artes (apesar da vertente competitiva), e a uma oportunidade de viagem pelo país com diário de bordo. E também um novo desafio para a RTP, na pedagogia da música no quadro da sua programação, pois organizar este festival deve ser motivo de promoção da melhor música portuguesa, que deve ser acarinhada.

Portugal e Lisboa em particular são, portanto, destinos de confiança para grandes eventos internacionais (Expo’98, Euro2004, cimeira da Nato, Web Summit e Eurovisão) e até nem se receia que a vitória nos aconteça de novo. Seria preciso, porém, um novo rasgo criativo e distintivo. Mas, como se sabe e a história conta, apenas o resto são cantigas!


Os dias do festival


Para além de um culto a merecer estudo sociológico, a política esteve sempre presente no festival, mesmo que o regulamento seja claro na distinção entre o que é a música e a intervenção política


Não há dias como estes! É o que pensam os fãs da Eurovisão, que os preparam com um ano de antecedência. Destes dias também ficam muitas histórias que são o legado de centenas de horas de televisão ao vivo e da participação de quase meia centena de países em comunhão competitiva e de milhões de turistas e operacionais, num evento que fala de canções, mas está muito para além delas.

Neste ano, em Lisboa, perfazem-se 50 representações de Portugal na Eurovisão, curiosamente.

Até à vitória, Portugal nunca se manifestou com propostas suficientemente distintivas. Desfolhou páginas de poesia e ferrou bandarilhas de esperança. Cantou o adeus e a festa da vida com Portugal no coração. E não chegou um grande amor nem a lusitana paixão para chamar a música ao nosso país. Será que estamos sempre destinados a precisar de um salvador da pátria?

O Salvador Sobral deu à RTP a responsabilidade nunca por ela imaginada e querida. E passou a fazer parte da História.

O Festival Eurovisão da Canção é uma fonte de criatividade, mas também de aplauso ou crítica corrosiva, de factos históricos e de figuras alucinantes – uma festa animada por milhares de fãs que se deslocam, anualmente, ao país anfitrião. Entre eles há uma cultura estabelecida que alimenta o certame de consumidores e de público ao vivo. Mais de 1500 canções concorreram até à data, o que daria 75 horas a ouvi-las continuamente. Há quem o fizesse, estou certo, dado o entusiasmo dos fãs por todo o mundo, que consomem o festival quase como o tema principal das suas vidas. Todos os anos, para além de quem o vê ao vivo, são 200 milhões de espetadores que assistem aos espetáculos pela televisão e internet, mais ou menos crentes nesta realidade competitiva.

Para além desse culto, a merecer estudo sociológico, a política esteve sempre presente no festival, mesmo que o regulamento seja claro na desejável distinção entre o que é a música e a intervenção política. Lembro que o festival começou com sete países, em 1956, e, após o desmembramento da União Soviética, o crescente interesse dos países do leste alterou a geografia do certame e a exigência competitiva, assim como pôs em relevo a componente política. Até a nossa primeira participação motivou o protesto contra a política de Oliveira Salazar.

Portugal juntou-se à família eurovisiva nesse ano de 1964 e deteve o recorde de mais participações sem vencer, até à obra-prima que, em 2017, amou por todos os concorrentes que o antecederam e também pela televisão pública portuguesa, que nunca enfrentou isto como um desafio ganhador, mas sim para cumprir calendário ou atingir a melhor classificação de sempre, portanto, sem que houvesse uma estratégia para trazer esta realização para Portugal.

Na primeira história analítica e enciclopédica editada em Portugal sobre este fenómeno (“Portugal 12 Pts – Festival da Canção”, de João Carlos Callixto e Jorge Mangorrinha, Âncora Editora, 2018) defendo que a perspetiva portuguesa não se alterou muito desde os primeiros anos de cantigas. A promoção de Portugal no estrangeiro sempre foi difícil ou ausente, embora algumas canções tivessem feito despertar as atenções lá fora. Mas nada mais do que isso. Mesmo que nalguns anos a vitória fosse possível, a pontuação não foi correspondente, porque algo mais havia a complicar as contas. Isto até ao passado ano, em Kiev, onde a RTP se viu confrontada com um acolhimento fora da escala habitual. O facto de nunca antes termos vencido foi um ponto forte para a vitória, como sempre o afirmei, e não uma fragilidade. É de admitir a vontade de diversificar as cidades-sede, mas faltava a Portugal uma canção e um intérprete diferenciados. Aconteceu. E aqui estamos, em Lisboa.

Os dias do festival fazem agora desta cidade o centro das atenções.

A capital portuguesa vê a sua hotelaria com a lotação esgotada e os últimos quartos disponíveis a preços proibitivos. Há uma dinâmica parecida com os últimos dias da Expo’98, em que quase nos faltava o tempo para respirar, mas hoje há uma cidade bem diferente, na sua oferta turística, designadamente. Em 1998, tudo ficou concluído, inclusivamente o Pavilhão Atlântico que, se não fosse construído, Lisboa não teria as condições perfeitas de palco para, 20 anos depois, receber o maior evento musical e televisionado do mundo. Nesses anos foi preciso ter gente a ver mais longe do que o nosso espaço e o nosso tempo, e os gastos enormes que foram realizados devem ser vistos também como investimento. Mas há que não esquecer que esses gastos foram essencialmente públicos, pelo que a contratação da cedência do espaço principal (Altice Arena) para a realização do evento eurovisivo, com um valor estimado de 2 042 000 euros, merece dúvidas, dado que este foi um equipamento construído com fundos públicos e rentável até que foi vendido a um privado.

O que importa também é saber que os responsáveis portugueses pela organização do festival estão a ser conduzidos pela experiência dos “mestres” da Eurovisão e isso ajuda a que possamos estar na presença de um investimento com resultados positivos para a RTP, para a cidade de Lisboa e para o país.

Então, o que é que destes dias pode ficar como legado?

Desde logo, uma enorme visibilidade, com impactos futuros, através de quem televisiona e de quem se desloca a Portugal, como os jornalistas, os membros das delegações e os fãs – os “Postais de Portugal”, gravados por todos os países concorrentes, mostram um país diverso e convidativo, e os dias da semanas eurovisiva prestam-se à celebração de uma ideia de convergência, através das artes (apesar da vertente competitiva), e a uma oportunidade de viagem pelo país com diário de bordo. E também um novo desafio para a RTP, na pedagogia da música no quadro da sua programação, pois organizar este festival deve ser motivo de promoção da melhor música portuguesa, que deve ser acarinhada.

Portugal e Lisboa em particular são, portanto, destinos de confiança para grandes eventos internacionais (Expo’98, Euro2004, cimeira da Nato, Web Summit e Eurovisão) e até nem se receia que a vitória nos aconteça de novo. Seria preciso, porém, um novo rasgo criativo e distintivo. Mas, como se sabe e a história conta, apenas o resto são cantigas!