Confesso que já não há pachorra para esta reiterada irresponsabilidade de deixar para amanhã o que pode e deve ser feito hoje. Com as mais variadas desculpas e condicionantes, da troika à falta de vontade política, empurra-se com a barriga o que devia ser importante, para colocar o foco nos egos e nas circunstâncias. É assim quando o Estado é incapaz de definir as suas funções essenciais e garantir fluxos financeiros para ter os recursos humanos e materiais necessários ao cumprimento sustentado das suas obrigações, sem repelões ou pré-ruturas, determinados pelas mudanças de governo, pelos burocratas ou pelas questões ideológicas. O Estado permite o acumular de passivos de inação e depois, no limiar das ruturas de funcionamento, lá arranja uns cobres para suprir as necessidades. A desfaçatez é tal que essa incapacidade de planeamento e de gestão é já considerada atributo, bem patente na idolatria da tenaz financeira do “somos todos Centeno”. Infelizmente é assim na saúde, na educação, na segurança, na proteção civil, nas infraestruturas, na cultura ou nas questões que têm a ver com a coesão territorial. O desplante da gestão quotidiana, sem horizonte de futuro, é tal, que até já se dão ao luxo de lançar aos leões mediáticos a informação de que membros do governo são chamados a São Bento para reportar a agitação no setor, como se o funcionamento interno e a gestão política do governo fossem tema. Fraca arte performativa esta que transforma a gestão política em enxovalho público para salvaguarda dos canais de sintonia da liderança com o mundo da cultura que a enfunou.
Que o cobertor não chegava, era uma evidência. Que existem algumas folgas financeiras que têm de ser salvaguardadas para imprevistos, é claro. Que se tudo falhar ao nível do parlamento e do governo, os cidadãos sabem que podem recorrer à Presidência para resolver os problemas, é um facto. Portugal configurou-se à gestão diária. Antes, com a troika, um dia de cada vez em austeridade; agora, cada dia é mais um tempo de expetativa de reposições e de conquistas, cada vez mais difíceis de cumprir, entre parceiros de solução governativa, sindicatos, setores da sociedade exauridos pelos sucessivos desinvestimentos e cidadãos conscientes de que algum protesto pode produzir os efeitos pretendidos.
O futuro é hoje, mas só para certas coisas.
Só assim se pode compreender o corrupio de posicionamentos, de entrevistas e de anúncios de moções ideológicas de putativos sucessores do atual secretário do PS, como se a anestesia partidária, os tiques impróprios para a matriz do partido e uma certa desintegração geracional não fossem razões suficientes para um toque de campainhas além dos umbigos ungidos pelo poder vigente e das ambições pessoais, por mais legítimas que sejam.
Só assim se pode interpretar que os lobos se transformem em cordeiros para anunciarem reiteradas ambições de integração em futuros governos, como se as máscaras de circunstância alguma vez pudessem disfarçar a genuína natureza dos espécimes. Pensar que, num tempo de crescente escrutínio popular e das redes sociais, ainda há quem conte com a memória curta ou com um exercício postiço do poder para se investir em personagem sem nexo com a realidade.
Ou perceber ainda as movimentações, agitações e outras erupções cutâneas dos parceiros de solução governativa e de alguns outrora embevecidos sindicatos agora em rota de efervescência para o 1.o de maio, para as negociações orçamentais ou para o bailado pré-eleitoral das legislativas de 2019, em salvaguarda da pele. Uns para saírem com a menor penalização política possível, depois do desastre autárquico, outros para darem o salto para a governação em busca das asas de Ícaro do poder, quiçá gerador de sentido de responsabilidade institucional.
Neste quadro em que o futuro apenas é antecipado por egoísmos, apesar das auréolas e das proteções de estimação, nem é de estranhar o enleio em que Rui Rio se coloca, com casos semanais. Um caso por semana e a suposta alternativa abana.
Esta epidemia de antecipação do futuro tem a vantagem de clarificar ao que estão e ao que vêm, no caso do PSD, um porta–voz para as questões sociais que faz o contrário do que o partido pensa ou um ministro-sombra da defesa, com mais sombras do que possibilidades de gerar qualquer tempo novo.
Enquanto se antecipam futuros pessoais, o futuro coletivo é hipotecado com decisões que são adiadas, pagamentos que são diferidos e a dívida pública que volta a crescer. Não será possível resolver de imediato todos os passivos acumulados durante anos, mas é preciso método, coragem política e sentido de futuro para responder aos problemas que resultam dessas inações passadas. Ou podemos conviver com os riscos das faltas de manutenção ferroviária, os bloqueios em setores vitais para a vida dos portugueses ou as debilidades de funcionamento de pontas-chave do Estado de direito democrático? Só haverá atenção e resposta quando há protesto, telefonema de Belém ou catástrofe?
É perturbante esta leviandade, como se só houvesse um futuro que importasse. É que na ânsia de desenrascar o presente e de antecipar o futuro, há um enorme vazio político de ideias para o futuro, quiçá fruto da folga política dada pelos aprisionados parceiros da solução governativa e pela ineficiente liderança da oposição à direita.
NOTAS FINAIS
Deriva perigosa. Não nos parece aceitável que o Estado imponha aos privados e aos cidadãos soluções mais gravosas do que aquelas que congemina para si. Será assim na transposição do regulamento (UE) 2016/679 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, como nos prazos dos contratos a prazo.
Deriva inevitável. Com o encerramento de balcões, a reorganização das ofertas de serviços e outras racionalizações afins, voltámos ao tempo em que temos de planear melhor as nossas vidas. No digital, tudo parece estar mais perto de quem não é infoexcluído; na realidade, a proximidade é cada vez mais uma miragem. Somos uma sociedade de sinais contraditórios. Descentraliza-se para estar mais próximo, centraliza-se para dar mais lucro.
Deriva positiva. Em março tivemos períodos em que a produção de energia por fontes renováveis supriu as necessidades gerais de energia do país. Só aconteceu porque as sementes de futuro foram lançadas no tempo certo.
Militante do Partido Socialista
Escreve à quinta-feira