Há um filtro nesta cidade, como um projector avariado que dá uma luz de quem se tenta lembrar de qualquer coisa, nesse efeito de anteontem ou distância que faz com que, mesmo uma vida apressada, seja tocada por uma benigna depressão. Hoje que os lisboetas têm algo de indígenas, num espanto manso de se verem descobertos, há zonas do mapa que parecem crescer de noite. E uma cidade que já não tinha idade para isto, acorda e dá por si olhando-se no espelho, entre o acne e a promessa, algo desengonçada com os gestos habituando-se ao seu novo alcance. Foi assim que fomos descobrir neste novo eixo que integramos há quase dois anos, na zona ribeirinha e oriental de Lisboa, uma galeria de arte contemporânea que cruza fios de velhos e novos achamentos, que desde o nome apura o ouvido para o passado, e trabalha com um pé entre a extinção e o que não cansa de se renovar. Ibirapí Contemporânea inaugurou em fevereiro deste ano, no Beato, e é o projecto de um francês, luso-descendente, de 28 anos.
Maxime Porto escolheu Coimbra como destino de Erasmus enquanto estudava História da Arte na universidade de Tours (centro de França). Ainda fez o mestrado em Mercado de Arte na École do Louvre, em Paris, e foi aí que começou a trabalhar nos leilões da Tajan e Southeby’s. A ideia foi testar o faro, antes de se lançar por conta própria. Lisboa foi o risco que calculou ao perceber que esta estava a ganhar relevo no mapa internacional do mercado da arte. Explica ao i a escolha por ver nesta aparição uma diferença face aos outros centros reinantes como Londres ou Paris. E diz que essa diferença não se fica por um certo gosto alheado, mas por haver uma proposta pregnante ao nível também do que estão a fazer os artistas portugueses e aqueles que têm procurado este país simultaneamente próximo e distante do mundo.
Indo buscar o nome à árvore Pau-Brasil, conhecida também como Ibirapitá ou Ibirapitanga (do idioma indígena Tupi), a proposta de programação desta galeria assenta sobre um desejo de pensar a identidade a par da história cultural, e daí já acena às preocupações de âmbito ecológico. A espécie cuja importância fez com que o seu nome baptizasse todo o país, ficou ameaçada de extinção, e esse perigo foi levado a sério ao ponto de, em finais do século XVIII, a punição por cortar uma árvore pudesse ser a pena de morte.
Agora, quase a chegar ao topo da colina, vale a pena tocar à campanhia no número 74 da Calçada Duque de Lafões, e ir saber o que diz o espaço deste armazém renovado que abriu com uma exposição de cinco artistas (quatro portugueses e um suíço) numa mostra com curadoria de Silvia Meloni (italiana). “Natura Sapiens” está por estes dias a ser arrumada para dar lugar à proposta seguinte, mas como ponto de partida, na respiração partilhada entre os trabalhos em diferentes linguagens e media de Ana Brotas, Patrícia Geraldes, Samuel Matzig, Inês Norton e Carlos Alexandre Rodrigues, sob o efeito de luz zenital conseguido através dos cortes precisos na cobertura, era uma sensação de estarmos numa estufa ou numa oficina com o seu quê de rústico. Escolhidas e combinadas dentro de um contorno tão abrangente quanto delicado, qualquer das peças joga com um estar a meio do caminho, num olhar que inspecciona e se questiona sobre a natureza, que tem algo de clínico, aturado, científico, e, ao mesmo tempo que se serve de instrumentos precisos, fica uma tensão indagadora, algo que não deixa já uma perspectiva gizada, mas nos chama para integrar a expedição.
Damos com um espaço que tem as provas, as recolhas de uma natureza observada e observando. Sejam fotografias ou desenhos, sejam peças que transformam e examinam, oscultam, elaboram a matéria primitiva, os métodos de cada um dos artistas deixam uma larga margem à meditação, e o que fica exposta é essa fronteira tão sensível em que homem e natureza se enfrentam, sem se perceber ao certo o que está fora e o que é interior, onde a agressão dá lugar à harmonia.
Entre o catálogo que Ana Brotas (1900) elaborou, numa série de caixas em que expõe algumas experiências de captação da luz no modo como atravessa o solo da floresta Amazónica, deixando sinais da sua dança ao longo de um largo período de exposição, sinais captados pelos sais de prata, sem câmara, encontramos a par dessas radiografias desenterradas, descrições das espécies vegetais que foram alvo de exame. A caladium, por exemplo. Conhecida como a planta mentirosa já que finge estar “doente” para enganar predadores, e fá-lo desenvolvendo nas folhas uma coloração que mimetiza o ataque de larvas. Os apontamentos, manuscritos nuns papelinhos brancos, traduzem perfeitamente o lado singelo de um trabalho de campo, de pesquisa, de atenção. São sinais de uma dedicação antiga, de um desejo ainda de conhecer o mundo, que além da validade que tem em si mesmo, traz uma calma em face dos apocalípticos vatícinios que nos cercam. E, assim, na identidade, na abordagem desta mostra, encontramos um tipo de perícia, uma exigência de método e paciência, um sentido tão forte que, nos nossos dias, se torna quase uma terapêutica.