Olhar o mundo através da notícia de duas mortes


Ambas mereciam ser noticiadas. O que espante é o realce que, nos jornais, uma e outra tiveram


Conservo ainda o hábito velho de procurar todas as manhãs, nos jornais, artigos que me façam pensar em como mudar a vida.

Pertenço a uma geração em que muitos acreditavam que cada dia novo constituía mais uma oportunidade para saber mais e, assim, poder contribuir para melhorar o mundo. 

Uma geração em que muitos acreditavam que viver era assumir um compromisso integral com essa procura permanente de melhor fazer os outros viver.

Claro está que nesse empenhamento havia momentos de fuga e contradições, mais ou menos radicais, de que desfrutávamos não sem gozo ou sem prazer.

Contradições vividas intensamente e que serviam para retomarmos, depois, o caminho que optáramos por trilhar, porventura com mais empenho, mas também mais compreensivos das circunstâncias da vida: da nossa e da dos outros.

E tudo isso era discutido e analisado, também nos jornais.

Hoje, ler jornais raramente proporciona essa aventura generosa.

Poucos são os articulistas que procuram e sabem mostrar o que fica para além da espuma dos dias servida pelas centrais de informação (deveria escrever de intoxicação?).

Poucos são os que sabem reconhecer a atitude digna de uma notícia e levá-la, depois, a um lugar de destaque e ponderação.

Recentemente, os jornais deram-se conta de duas mortes.

De um lado, a de um polícia francês que se ofereceu para substituir uma refém e acabou, por isso, morto pelo sequestrador, em vez da mulher que salvou.

De outro, a de um homem já doente que soube, sem dúvida, vencer o cinzentismo da noite de Lisboa e promover lugares de ócio e prazer para as elites de uma esquerda e de uma direita cosmopolitas que procuravam modernizar uma sociedade saída de 40 anos de uma ditadura ultrarreacionária e da severidade que, necessariamente, uma revolução popular ocasionara depois.

Ambas as mortes foram noticiadas. Ambas mereciam ser noticiadas.

O que surpreende, porém, é o realce que, nos jornais, uma e outra tiveram.

A última, honras de primeira página e muitas folhas; a outra, uma ou duas, colunas e um artigo redentor de um articulista da direita.

A questão não está no balanço da importância de tais mortes, ou de tais vidas, ou – porventura melhor – no balanço da vida de um e da morte de outro. 

A questão está no que revela de ensimesmamento a desproporção do comentário.

Se um procurou alegrar um pouco que fosse a vida dos outros – de alguns outros -, cansados de ideais juvenis não concretizados, o segundo deu a sua vida para salvar a de outra pessoa. 

Claro que um era português e o outro francês, e o menor enfoque da objetiva jornalística tem, por essa razão, consequências sempre notórias.

Claro está que um era polícia e o outro artista, e é sempre mais simpático ser-se artista, ou seu hospedeiro, do que polícia.

Pasolini percebeu isso bem.

De um, espera-se que entretenha as nossas vidas e nos iluda da morte e do finamento que aceitámos dos nossos ideais.

Do outro, precisamente, que dê a vida para que não morramos nós mais depressa.

De um, não se espera que morra, pois com ele morremos nós um pouco também.

Do outro, espera-se exatamente o contrário: que morra, se necessário.

Pertenço a uma geração em que muitos acreditavam – mas, pelos vistos, já não acreditam muito – poder contribuir todos os dias para melhorar o mundo.

Que a festa – mesmo que só a nossa – continue! 


Olhar o mundo através da notícia de duas mortes


Ambas mereciam ser noticiadas. O que espante é o realce que, nos jornais, uma e outra tiveram


Conservo ainda o hábito velho de procurar todas as manhãs, nos jornais, artigos que me façam pensar em como mudar a vida.

Pertenço a uma geração em que muitos acreditavam que cada dia novo constituía mais uma oportunidade para saber mais e, assim, poder contribuir para melhorar o mundo. 

Uma geração em que muitos acreditavam que viver era assumir um compromisso integral com essa procura permanente de melhor fazer os outros viver.

Claro está que nesse empenhamento havia momentos de fuga e contradições, mais ou menos radicais, de que desfrutávamos não sem gozo ou sem prazer.

Contradições vividas intensamente e que serviam para retomarmos, depois, o caminho que optáramos por trilhar, porventura com mais empenho, mas também mais compreensivos das circunstâncias da vida: da nossa e da dos outros.

E tudo isso era discutido e analisado, também nos jornais.

Hoje, ler jornais raramente proporciona essa aventura generosa.

Poucos são os articulistas que procuram e sabem mostrar o que fica para além da espuma dos dias servida pelas centrais de informação (deveria escrever de intoxicação?).

Poucos são os que sabem reconhecer a atitude digna de uma notícia e levá-la, depois, a um lugar de destaque e ponderação.

Recentemente, os jornais deram-se conta de duas mortes.

De um lado, a de um polícia francês que se ofereceu para substituir uma refém e acabou, por isso, morto pelo sequestrador, em vez da mulher que salvou.

De outro, a de um homem já doente que soube, sem dúvida, vencer o cinzentismo da noite de Lisboa e promover lugares de ócio e prazer para as elites de uma esquerda e de uma direita cosmopolitas que procuravam modernizar uma sociedade saída de 40 anos de uma ditadura ultrarreacionária e da severidade que, necessariamente, uma revolução popular ocasionara depois.

Ambas as mortes foram noticiadas. Ambas mereciam ser noticiadas.

O que surpreende, porém, é o realce que, nos jornais, uma e outra tiveram.

A última, honras de primeira página e muitas folhas; a outra, uma ou duas, colunas e um artigo redentor de um articulista da direita.

A questão não está no balanço da importância de tais mortes, ou de tais vidas, ou – porventura melhor – no balanço da vida de um e da morte de outro. 

A questão está no que revela de ensimesmamento a desproporção do comentário.

Se um procurou alegrar um pouco que fosse a vida dos outros – de alguns outros -, cansados de ideais juvenis não concretizados, o segundo deu a sua vida para salvar a de outra pessoa. 

Claro que um era português e o outro francês, e o menor enfoque da objetiva jornalística tem, por essa razão, consequências sempre notórias.

Claro está que um era polícia e o outro artista, e é sempre mais simpático ser-se artista, ou seu hospedeiro, do que polícia.

Pasolini percebeu isso bem.

De um, espera-se que entretenha as nossas vidas e nos iluda da morte e do finamento que aceitámos dos nossos ideais.

Do outro, precisamente, que dê a vida para que não morramos nós mais depressa.

De um, não se espera que morra, pois com ele morremos nós um pouco também.

Do outro, espera-se exatamente o contrário: que morra, se necessário.

Pertenço a uma geração em que muitos acreditavam – mas, pelos vistos, já não acreditam muito – poder contribuir todos os dias para melhorar o mundo.

Que a festa – mesmo que só a nossa – continue!