Uma “sala de chuto” no antigo Casal Ventoso


No início dos anos noventa do século passado, a brigada a que pertencia, na então SCITE-Secção Central de Investigação do Tráfico de Estupefacientes da PJ, investigava movimentações suspeitas nas imediações de uma casa sita em pleno coração do Casal Ventoso. Diversos suspeitos de serem consumidores de produtos estupefacientes entravam na dita casa e saíam, regra…


No início dos anos noventa do século passado, a brigada a que pertencia, na então SCITE-Secção Central de Investigação do Tráfico de Estupefacientes da PJ, investigava movimentações suspeitas nas imediações de uma casa sita em pleno coração do Casal Ventoso. Diversos suspeitos de serem consumidores de produtos estupefacientes entravam na dita casa e saíam, regra geral, passados 20 a 30 minutos. Alguns deles, após o abandono daquela, seriam seguidos e abordados longe do local verificando-se que  nada transportavam que os comprometesse. Pareciam tranquilos e agora, à vista próxima, apresentavam características típicas de consumidores de opiáceos. Na posse de Mandados de Busca, entrámos de surpresa na habitação, logo após uma outra nossa equipa, posicionada à distância e munida de equipamento adequado, nos ter comunicado que no interior do alvo  já se encontravam ente 7 a 8 suspeitos. Deparámo-nos com uma cena digna do filme Apocalypse now: vários toxicodependentes injetavam-se  com heroína, em diversas partes do corpo, mais propriamente, naquelas onde ainda era possível, sem as mínimas condições de higiene. A maioria deles apresentava, especialmente nos braços e antebraços, mas também nos membros inferiores, as chamadas “ estradas”, assim apelidadas, por apresentarem calosidades de forma continuada e de cor negra, a fazer lembrar o pavimento de alcatrão. Naquelas zonas do corpo, fruto do consumo crónico, já não era possível fazerem penetrar a agulha das seringas, com a eficácia desejada. Em cima de um balcão, atrás do qual se encontravam os traficantes, repousavam diversas seringas, todas elas já municiadas com um líquido acastanhado, que facilmente adivinhámos do que se tratava, prontas a disparar nas veias de outros infelizes.Com este modus operandi, os traficantes julgavam  ser mais difícil às autoridades chegarem até eles, a partir dos consumidores, por evidente maior dificuldade na obtenção de prova material. Os traficantes podiam, ainda mais facilmente, adulterar o produto estupefaciente, por não dependerem exclusivamente de substâncias sem pó.

Para os toxicodependentes era interessante acederem àquela oferta, pois para além de terem à sua disposição um local abrigado e discreto, permitia-lhes aceder ao consumo de forma imediata, logo após a compra, sem mais delongas, tenhamos em conta a brutal dependência física que a heroína provoca.

Vem este episódio a propósito do anúncio da projectada abertura de três salas de consumo assistido ou protegido, por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa em três locais problemáticos da cidade : Casal Ventoso, Zona Alta e  Zona Ocidental. Este tipo de apoio aos consumidores de drogas duras, em especial opiáceos, mas também crack está previsto desde a publicação do Decreto Lei 183/2001 de 21 de Junho. Aqui não será fornecido aos utentes qualquer tipo de droga, antes um kit para um consumo o mais asséptico possível, do produto que transportam e sob a vigilância de técnicos especializados que poderão intervir em casos como os de overdose. Vários países europeus já possuem este tipo de oferta, verificando-se que muito tem contribuído para benefício da saúde dos toxicodependentes.Com estas salas, será possível encaminhar os seus utentes para programas de substituição, para a prevenção e, eventualmente, a abstinência, ou seja, motivá-los para o tratamento. De facto os grandes problemas relacionados com o consumo de drogas duras, passam pelas doenças associadas, como sejam a tuberculose, o VIH, a hepatite C, as mortes por overdose e o abandono de seringas . Outros apoios previstos estão relacionados com a higiene, alimentação e acesso a cuidados médicos. Espera-se que as melhores práticas em uso nos países com experiência neste tipo de apoio sejam colocadas em uso, com eventuais adaptações e com o contributo do Ministério da Saúde e dos experimentados profissionais do SICAD – Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências. Passados quase dezassete anos sobre a legislação que descriminalizou o consumo de estupefacientes, a abertura destas projetadas salas parece pecar por tardia quando, por exemplo, na área de Lisboa, se estima  existir ainda  um número de consumidores regulares de heroína próximo dos 2000. Não nos esqueçamos do velhinho Decreto Lei 15/93 de 22 de Janeiro ( legislação de combate à droga ), tão avançado para a época e que a determinado ponto do seu preâmbulo refere, relativamente ao toxicodependente: “ …alguém que necessita de assistência médica e que tudo deve ser feito para o tratar, por sua causa e também pela protecção devida aos restantes cidadãos “.

 

Luís Batista

Coordenador de investigação criminal, aposentado, da PJ


Uma “sala de chuto” no antigo Casal Ventoso


No início dos anos noventa do século passado, a brigada a que pertencia, na então SCITE-Secção Central de Investigação do Tráfico de Estupefacientes da PJ, investigava movimentações suspeitas nas imediações de uma casa sita em pleno coração do Casal Ventoso. Diversos suspeitos de serem consumidores de produtos estupefacientes entravam na dita casa e saíam, regra…


No início dos anos noventa do século passado, a brigada a que pertencia, na então SCITE-Secção Central de Investigação do Tráfico de Estupefacientes da PJ, investigava movimentações suspeitas nas imediações de uma casa sita em pleno coração do Casal Ventoso. Diversos suspeitos de serem consumidores de produtos estupefacientes entravam na dita casa e saíam, regra geral, passados 20 a 30 minutos. Alguns deles, após o abandono daquela, seriam seguidos e abordados longe do local verificando-se que  nada transportavam que os comprometesse. Pareciam tranquilos e agora, à vista próxima, apresentavam características típicas de consumidores de opiáceos. Na posse de Mandados de Busca, entrámos de surpresa na habitação, logo após uma outra nossa equipa, posicionada à distância e munida de equipamento adequado, nos ter comunicado que no interior do alvo  já se encontravam ente 7 a 8 suspeitos. Deparámo-nos com uma cena digna do filme Apocalypse now: vários toxicodependentes injetavam-se  com heroína, em diversas partes do corpo, mais propriamente, naquelas onde ainda era possível, sem as mínimas condições de higiene. A maioria deles apresentava, especialmente nos braços e antebraços, mas também nos membros inferiores, as chamadas “ estradas”, assim apelidadas, por apresentarem calosidades de forma continuada e de cor negra, a fazer lembrar o pavimento de alcatrão. Naquelas zonas do corpo, fruto do consumo crónico, já não era possível fazerem penetrar a agulha das seringas, com a eficácia desejada. Em cima de um balcão, atrás do qual se encontravam os traficantes, repousavam diversas seringas, todas elas já municiadas com um líquido acastanhado, que facilmente adivinhámos do que se tratava, prontas a disparar nas veias de outros infelizes.Com este modus operandi, os traficantes julgavam  ser mais difícil às autoridades chegarem até eles, a partir dos consumidores, por evidente maior dificuldade na obtenção de prova material. Os traficantes podiam, ainda mais facilmente, adulterar o produto estupefaciente, por não dependerem exclusivamente de substâncias sem pó.

Para os toxicodependentes era interessante acederem àquela oferta, pois para além de terem à sua disposição um local abrigado e discreto, permitia-lhes aceder ao consumo de forma imediata, logo após a compra, sem mais delongas, tenhamos em conta a brutal dependência física que a heroína provoca.

Vem este episódio a propósito do anúncio da projectada abertura de três salas de consumo assistido ou protegido, por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa em três locais problemáticos da cidade : Casal Ventoso, Zona Alta e  Zona Ocidental. Este tipo de apoio aos consumidores de drogas duras, em especial opiáceos, mas também crack está previsto desde a publicação do Decreto Lei 183/2001 de 21 de Junho. Aqui não será fornecido aos utentes qualquer tipo de droga, antes um kit para um consumo o mais asséptico possível, do produto que transportam e sob a vigilância de técnicos especializados que poderão intervir em casos como os de overdose. Vários países europeus já possuem este tipo de oferta, verificando-se que muito tem contribuído para benefício da saúde dos toxicodependentes.Com estas salas, será possível encaminhar os seus utentes para programas de substituição, para a prevenção e, eventualmente, a abstinência, ou seja, motivá-los para o tratamento. De facto os grandes problemas relacionados com o consumo de drogas duras, passam pelas doenças associadas, como sejam a tuberculose, o VIH, a hepatite C, as mortes por overdose e o abandono de seringas . Outros apoios previstos estão relacionados com a higiene, alimentação e acesso a cuidados médicos. Espera-se que as melhores práticas em uso nos países com experiência neste tipo de apoio sejam colocadas em uso, com eventuais adaptações e com o contributo do Ministério da Saúde e dos experimentados profissionais do SICAD – Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências. Passados quase dezassete anos sobre a legislação que descriminalizou o consumo de estupefacientes, a abertura destas projetadas salas parece pecar por tardia quando, por exemplo, na área de Lisboa, se estima  existir ainda  um número de consumidores regulares de heroína próximo dos 2000. Não nos esqueçamos do velhinho Decreto Lei 15/93 de 22 de Janeiro ( legislação de combate à droga ), tão avançado para a época e que a determinado ponto do seu preâmbulo refere, relativamente ao toxicodependente: “ …alguém que necessita de assistência médica e que tudo deve ser feito para o tratar, por sua causa e também pela protecção devida aos restantes cidadãos “.

 

Luís Batista

Coordenador de investigação criminal, aposentado, da PJ