Escrevo na ressaca dos ecos do primeiro debate do governo na Assembleia da República, agora pontuada pela presença do fragilizado Fernando Negrão à frente da bancada do PSD e pela habitual predominância das palavras de António Costa. O primeiro-ministro utiliza com destreza estes debates para marcar a agenda e clarificar as pontas soltas. É uma espécie de homilia ao país, em várias preces, com muita preparação a montante para surtir o efeito desejado a jusante. Fala no hemiciclo supremo para fora do parlamento e depois aguarda que os escudeiros façam o seu trabalho. Tem sido eficaz e protuberante, mesmo quando foi inevitável mostrar a face mais humana e emocional do líder do PS. E os ecos desta oportunidade destacam, agora, um discurso virado para a “inclusão”, feito por Costa para aproveitar a boleia da busca de palco por parte de Rui Rio no ciclo pós-Passos e para acalmar as inquietações de mudança de agulha que apoquentam BE e PCP. Por um lado, Costa abre uma janela (que estava fechada e não tinha como continuar encerrada perante o desafio de Rio); por outro, continua com a porta escancarada (pois dela precisa para aguentar a caminhada triunfal). Isto é, se não se exclui ninguém, depois ver-se–á o que fazer em 2019. Esta é a mensagem. É a versão ecuménica de Costa no seu perfil mais elaborado.
Costa pode dar-se ao luxo de virar os faróis para os dois lados do entroncamento porque sabe que é muito difícil deixar de ganhar em 2019. Economicamente, a conjuntura continuará a ajudar. O Estado social conseguirá aguentar-se onde o desastre começa a surgir. Politicamente, os “acordos de regime” constituem a taluda que lhe faltava. Na verdade, a estratégia do comité mais restrito de Rui Rio pode colocar a dúvida insanável no “centro” dos eleitores (talvez seja esta convicção uma das razões da rebelião de muitos deputados do PSD) e esta é uma oportunidade para Costa ser o fiel da balança dos indecisos, invocar no momento certo o “voto útil” no PS em detrimento do “novo PSD” e, se ganhar com dependências, depois escolher quem lhe dá mais jeito para atingir a maioria parlamentar. Rio joga no fio da navalha, dando, para já, muito a Costa. Convenhamos que é um caminho para enfatizar o PSD como partido de poder. Mas o seu risco – que existe e é substancial – só é diminuído se, depois do orçamento de 2019 aprovado, avançar para as diferenças que façam o eleitor não fidelizado escolher o PSD em vez de PS ou CDS – por outras palavras, persuadir esse eleitor da existência de um PSD verdadeiramente alternativo e não coincidente com o estigma (ainda muito visível) da ligação do PSD à austeridade da troika. E Rio, convenhamos novamente, tem muito para estabelecer uma corrente nessa fase: é fora da caixa, não respeita o política e mediaticamente correto, não está formatado pelos ditames das agências de comunicação, defende o impopular, compra em nome dos princípios as guerras mais imprevistas. Será um trunfo neste país já tão habituado ao ruído improcedente?
Costa sabe ainda que Rio tem um risco adicional: dar o litro, perder junto à meta e ficar sem o parceiro natural. Pois é. Se Costa chegar a 2019 a olhar para os dois lados, pode chegar-lhe acenar ao CDS e resolver de outra forma o acordo parlamentar. Talvez ponderando esse cenário, resolveu começar a bater no CDS, a pretexto da tese dos parceiros naturais. Contudo, chegado o momento da verdade, Costa (da “inclusão”) sabe que um acordo PS-CDS para uma legislatura, baseado no “superior interesse nacional”, seria o xeque-mate na estratégia de Rio. Alguns já devem ter visto que essa seria a causa de mais uma longa hibernação do PSD fora do poder. E esperam para ver se ganha novamente quem aposta no cenário (por ora) mais improvável.
Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto
Escreve à quinta-feira