Crónica sobre os casos mediáticos e os outros


Por muito sumarenta que seja a novela, há uma certa ignomínia que perpassa todo o assunto que devia ser indigna dos nossos dias, no que expõe das permissividades que o sistema apresenta


Na semana que passou, em representação de uma constituinte, desloquei-me aos serviços do Ministério Público de uma comarca do distrito de Santarém para defesa (queria eu urgente) dos direitos da minha patrocinada.

A utilidade do processo, já que estamos a falar de subtracção de bens, dependeria da rapidez de actuação do titular do inquérito, como salientara em requerimento prévio, assinalado de urgente e há alguns dias remetido à secção do MP.

A verdade, porém, é que a senhora procuradora, nesse dia, tendo alguém que lhe podia explicar e ajudar na condução do inquérito, mandou o recado pela sua funcionária de que os autos ainda não lhe tinham sido conclusos e só depois de lê-los estaria em condições de decidir da oportunidade, ou não, de ser informada pessoalmente sobre o processo.

Podia tê-los pedido imediatamente e ajuizar do sucesso, mas não, aguardou a conclusão…

Com isso, espero que não, mas é provável que tenha comprometido grande parte da utilidade do próprio processo para as vítimas do crime que, atendendo à amostra, provavelmente alastra impune pela comarca onde esta senhora magistrada é a titular da acção penal.

Esta postura, que não será a regra mas também não é única, dá-nos a dimensão deste divórcio que há entre a necessidade da investigação penal e a sua eficácia.

Que se manifesta abundantemente nas franjas desta magistratura que faz a investigação criminal fechada no seu gabinete, num exercício mecânico e deprimente, sem mérito, sem brio e, porventura pior, sem aparente vontade.

Qualquer advogado que trabalhasse assim, com este foco no resultado, certamente morreria de fome, como pode acontecer àqueles a quem a justiça posterga a urgência de uma reacção…

Infelizmente, esta ideia sobre a justiça, que não é mediática nem ágil e que não tem foros de acompanhamento diário, e que se arrasta, arrastando a população, sem a difusão dos grandes processos que a vêm encantando, não tem voz nem ecos.

E se é verdade que ainda há pouco, nesta página, se elogiou a actuação da PGR e do MP nos processos mais mediáticos, a vertente mais comezinha da sua actuação, longe do holofotes como é aqui o caso, deixa muito a desejar.

Já da restante, a comunicação social vai-nos dando eco de que está a correr, sem subtilezas nem silêncios mais ou menos cúmplices, punhos de renda ou luvas de pelica, uma batalha diplomática e judicial entre dois Estados soberanos em que o MP e sistema judiciário são visados.

Destes temas, o país vai tomando conhecimento, em prime time, das suas muitas incidências, pressões, recados e semicimeiras, mais ou menos distantes, entre os governantes, e alimentado com relatos em quase directo sobre o que os regimes se aconselham uns aos outros ou as ameaças que se fazem mutuamente.

A ideia de que a porta dos corredores do poder judicial e do MP possa estar assim tão perto destas querelas devia ser, só como hipótese de raciocínio, um retrocesso civilizacional.

Note-se, aliás, nesta querela de Portugal e Angola, que olhando aos avanços civilizacionais recentes de um país e de outro, e muito particularmente o espectro do tipo de acções que a justiça vem reservando aos seus altos dirigentes de um lado e de outro, parece que estamos exactamente no tal fenómeno de quando a criatura enfrenta o criador.

Ou seja, por muito sumarenta que seja a novela, há uma certa ignomínia que perpassa todo o assunto que devia ser indigna dos nossos dias, no que expõe das permissividades que o sistema apresenta.

O antigo princípio fundamental da separação de poderes não pode, em lugar nenhum, ser erigido à condição de pormenor decorativo da democracia e a administração da justiça tem de ser objecto de uma das mais fundamentais reformas de que o país precisa.

A outra faceta desta questão é esta manifestação opulenta e desconcertante da evidência de um funcionamento diferente do sistema judiciário, em Lisboa, relativamente ao país, e do modelo estafado que redunda no cumprimento mecânico e meramente formal da importantíssima atribuição que a lei faz ao MP em muitas comarcas desta terra.

É que este espectáculo da justiça dos ricos e dos poderosos, em que interessa à discussão em julgamento se os temas da investigação e os despachos interlocutórios foram ou não do conhecimento directo da PGR, dá-nos a medida da abissal distância entre alguma investigação penal sediada em Lisboa e a do resto do país.

E não necessariamente por causa deste caso, mas mais porque o processo expõe o funcionamento do MP por dentro, parece hoje muito evidente que tal lógica da segunda magistratura independente que o MP reclama é uma ficção dos códigos, exigindo-se a sua reforma urgente.

 

Advogado na norma8advogados

pf@norma8.pt

Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990