Não é óbvio que Marcelo se recandidate


A futurologia é arriscadíssima mas, mesmo assim, vale a pena, dois anos após a eleição de Marcelo para um mandato de cinco, ponderar o improvável cenário de não recandidatura


1. Fazendo um exercício de memória, é possível recordar que Marcelo Rebelo de Sousa afirmou, ao apresentar-se na corrida a Belém, que uma das pessoas que ouviu com atenção e o levaram a avançar foi o seu neto mais velho. Este ter-lhe-á dito que concordava, desde que fosse só um mandato. Não se sabe o que pensarão o neto e o avô Marcelo lá mais para o fim do mandato em curso. Mas há uma coisa que se pode ter por certa: os portugueses adoram e vão continuar a adorar o seu Presidente dos afetos e da proximidade, eleito há precisamente dois anos, e que tem sido exemplar em praticamente todas as matérias. Se depender dos sentimentos da população, é de apostar singelo contra dobrado que manteremos o chefe do Estado.

Mesmo assim, vale a pena ponderar a matéria, deixando até de parte quaisquer eventuais debilidades de saúde que pudessem limitar uma nova apresentação. Será que um Presidente que é adorado, que não vai para novo e que, quando chegar ao termo do atual mandato, terá já 73 anos, irá recandidatar-se por mais cinco para ficar por Belém até aos 78? Talvez. Mas convenhamos que, mesmo conhecendo Marcelo e a sua hiperatividade permanente, tal só acontecerá se ele entender racionalmente que a sua continuidade seja absolutamente essencial para o país, até porque ele sabe melhor que ninguém que a sua popularidade dificilmente se manterá nestes picos durante dez anos. Além de que Marcelo é claramente, ao jeito de Soares, um Presidente que tem mais vida para além de Belém e do simbólico estatuto de ex–PR.

É certo que todos os presidentes anteriores demandaram e ganharam um segundo mandato. Mas não é menos verdade que, no final, saíram de Belém desgastados, embora tenham depois recuperado o prestígio e a estima do povo e da República. É verdade isso tudo. Mas também é verdade que Marcelo é diferente e que pode querer sair no apogeu e enveredar logo por outros caminhos, como seja a escrita de memórias, fazer conferências de alto nível ou desempenhar uma relevante função internacional, adequada a este homem tão inteligente quanto ativo e multifacetado.

Uma não recandidatura de Marcelo iria, por outro lado, alterar todos os dados da política que alguns, nesta altura, tendem erradamente a limitar a 2019, depois das europeias e das legislativas. Ora, as presidenciais ocorrerão em janeiro de 2021 (o que significa que estarão lançadas a partir de setembro de 2020, o mais tardar). Daqui até lá, muitas coisas irão acontecer. Se Marcelo for a votos, a questão deverá ficar logo resolvida. Mas, num cenário de não ida, não faltarão putativos candidatos, nomeadamente da área do PS, PSD e CDS. São tantos que nem dá para citar um que seja. Talvez Marcelo vá embora para lhes dar lugar. Ou talvez fique para não lhes dar. Com ele, nunca se sabe. Mas, hoje mais do que ontem, sabe-se que fará o que achar melhor para Portugal e que não deixará de influenciar discretamente uma eventual sucessão. Atualmente, percebe-se bem que Marcelo já é um homem diferente do que chegou a Belém. Está menos taticista, mais profundo, mais maduro e, certamente, mais sóbrio. Certos aspetos de uma dura realidade de um país esquecido e sofrido (distante do glamour social da urbe) a isso o têm obrigado e ele tem correspondido de forma notável.

A futurologia é perigosa na política, mas é uma constante que está presente nas cabeças dos seus protagonistas, dos politólogos, sociólogos e jornalistas. Por isso, mesmo sabendo que tudo muda num instante, não há que ter receio de falar sobre hipotéticos cenários futuros.

2. No meio da absurda e demagógica questão da sua transferência para o Porto, passaram despercebidos os 25 anos do Infarmed. Resultante da junção da Direção-Geral dos Assuntos Farmacêuticos e do Centro de Estudos do Medicamento, o Infarmed tem sido um elemento fundamental e estruturante da política do medicamento em benefício da saúde dos portugueses. Em boa hora foi criado sob tutela do então ministro da Saúde, Arlindo Carvalho, cujo nome é indissociável desta oportuna decisão. Foi, aliás, durante a sua passagem pelo governo que se aprovou também a lei que torna todos os portugueses potenciais dadores de órgãos, deixando de ser apenas os que expressassem esse desejo. Trata-se de uma lei que ainda hoje é considerada internacionalmente vanguardista e que salvou milhares de vidas, devido à imediata recolha de órgãos. Quando se fala em reformismo, é oportuno lembrar sobretudo os políticos que fizeram coisas, em vez dos que só discursaram.

3. Com grande oportunidade, Manuela Ferreira Leite defendeu esta semana na TSF que a Câmara de Lisboa deve devolver diretamente aos proprietários os 58 milhões de euros da taxa de proteção civil que cobrou abusivamente durante três anos e que o Tribunal Constitucional chumbou. Só que, manhosamente, a câmara, que foi lesta a cobrar e fazer as contas, está a aplicar um esquema burocrático para enredar os proprietários, obrigando-os a uma série de diligências para dificultar ao máximo o reembolso. O mesmo se passa, aliás, noutros municípios que cobraram também a taxa ilegal. É a chamada esperteza saloia.

Jornalista