Eras antes de os chefs cozinharem para o povo em horário nobre, Paul Bocuse foi uma estrela quando a gastronomia era tida como um prazer sensorial, um pretexto familiar e também um ato de sobrevivência. O fascínio pop pela cozinha é recente mas Bocuse já o tinha nos anos 60.
Criador acidental da nouvelle cuisine, nunca se referiu ao termo cunhado em 1969 pelos críticos Henri Gault e Christian Millau, que comparava a cozinha de Bocuse com a Nouvelle Vague, o movimento de novéis cineastas franceses como François Truffaut e Jean-Luc Godard. Bocuse sempre recusou o rótulo, argumentado ser apenas uma forma de cozinhar, herdada de experiências e aprendizagens.
O tempo é o melhor tempero para apurar uma receita e a história reconhecê-lo-ia como alguém tão importante para a cozinha como Le Corbusier para a arquitetura e Christian Dior para a moda. Universos distantes na textura, no cheiro ou paladar que não se discutem ao nível sensorial mas se explicam através do racional.
Bocuse trouxe a modernidade estética para o prato, observando a refeição não apenas da sua perspetiva funcional mas também visual. Como um quadro. Abdicou dos grandes caldeirões e recentrou atenções na essência dos produtos desde a sua origem. Guardou as manteigas e os cremes característicos da cozinha francesa no frigorífico e introduziu novas questões como a preocupação com a qualidade dos produtos. Procurou ingredientes frescos e mais simples e, graças a essa mudança de paradigma, deu uma nova gastronomia ao mundo, partindo da França gravada no copo. O galo francês tatuado no braço era um símbolo de resistência – Bocuse combateu na guerra.
O “Chef do Século” para o The Culinary Institute of America morreu aos 91 anos como em vida: no restaurante de Collonges-au-Mont-d’Or, uma vila perto de Lyon. Bocuse lutava pela sobrevivência contra a Doença de Parkinson.
Pedido do pai, recusa do amigo Nascido a 11 de fevereiro de 1926 em Collonges-au-Mont-d’Or, colecionava três estrelas do Michelin há mais de 50 anos. Começou na cozinha a pedido do pai, Georges Bocuse, dono do restaurante da família em Lyon, que perguntou ao amigo Fernand Point se aceitaria o filho na cozinha. Perante a recusa do chef, Paul Bocuse decidiu tentar pelo próprio pé, sem se identificar. E conseguiu a vaga de ajudante de cozinha no La Pyramide. Com a experiência, aprendeu a escolher os melhores ingredientes, os mais frescos.
O avô Joseph vendeu o restaurante e a marca Bocuse a um russo, Borisoff, forçando o pai de Bocuse a montar um novo restaurante a 100 metros do original. Em 1959, Paul Bocuse assumiu a cozinha e ganhou a primeira estrela Michelin. O reconhecimento e o dinheiro permitiram-lhe reaver a antiga propriedade da família, onde montou o restaurante Auberge du Pont de Collonges. Paul Bocuse dormia no quarto em que nasceu, no piso superior do restaurante, e onde acabaria por adormecer para a eternidade.
Na biografia “Fogo Sagrado”, publicadaem 2005, Bocuse revelou ter mantido relacionamentos com três mulheres de países diferentes, em simultâneo e com conhecimento das respectivas. Teve filhos de duas delas. No livro, dirime as diferenças entre comida e sexo: “Nós temos apetite pelo outro, devoramos com os olhos”.
Bocuse deixa descendência: um dos filhos, Jérôme Bocuse, já é chef. Na hora de levantar a mesa, o Presidente francês Emmanuel Macron descreveu-o como “a encarnação da cozinha francesa” e elogiou “a generosidade, o respeito pelas tradições e a inventividade” no Twitter. “Os chefs choram nas suas cozinhas, no Eliseu e em toda a França mas vão continuar o seu trabalho”.