Este mundo em que vivemos


A exploração mediática do caso da “Raríssimas” é mais uma manifestação de um mundo público que convida a sentimentos atentatórios da vida democrática e responsabilizadora


O caso exposto pela completa investigação da TVI sobre a vida da IPSS “Raríssimas” traduz em abundância como se ocupa pelos dias que correm o espaço público mediático (felizmente ainda há o não mediático, com notáveis eventos de interesse e enriquecimento). O exposto (e o que demais se saberá) deverá implicar uma investigação de eventuais ilegalidades, abusos e fraudes na atribuição e gestão de dinheiros públicos e patrocínios privados e poderá merecer uma censura sobre condutas que a ética (que sempre varia no catálogo em concreto) não recomendaria – com efeitos individuais e, na sequência, internos externos à dinâmica da instituição. Seguirá necessariamente os seus trâmites, em mais uma evidência da importância da liberdade da imprensa independente, e terá naturalmente os seus resultados, que essa independência e competência do jornalismo livre proporcionam.

Daí até à náusea informativa que nos envolveu e envolve enquanto comunidade interessada no mundo nacional, desde pormenores de vidas privadas até ao pretexto para o combate político mais básico (uma vez que o Estado e quem está a exercer funções no Estado parecem estar sempre em todo o lado), foi o pequeno passo a que vamos estando habituados nas mais diversas áreas do espaço escolhido pelos “media” e, depois, pelas redes sociais, pelos blogs e demais – e que a sanidade aconselha a afastar. Do interesse e do esclarecimento que interessa à causa pública, próprios da deontologia do jornalismo de averiguação e orientados por princípios de legalidade e de contraditório sem preconceitos e representações prévias – uma trave-mestra de uma democracia consolidada e madura –, rapidamente se passa para a devassa gratuita, para a mórbida curiosidade sobre a vida alheia, para a inveja da ascensão social, para a guerrilha com alvos “ad hominem” (estruturais ou circunstanciais), para a exibição de cumplicidades e de argumentos falaciosos, para a confusão dolosa entre situações não equiparáveis, para as imputações fora de contexto e com necessidade de enquadramento para compreensão, para a vontade hipócrita de eliminação e extermínio deste e daquele. A informação válida, obtida e comprovada por meios lícitos, instruída e reconstituída sem pré-compreensões, eficiente na denúncia e na revelação, rapidamente se converte neste espaço massificado e vulgarizado em desinformação generalizada, em condutas desproporcionadas, em comentários de pura humilhação, em populismos sociológicos e discriminatórios, até em práticas criminosas ou juridicamente responsabilizadoras. Para já não falar na exibição pura e simples de algo tão redutor como a falta de educação. Para também não abordar a impunidade em que os “interessados” se sentem para promover o temor, a ira, a raiva, o ressentimento, o ressabiamento. Será este o mundo em que queremos viver? Como podemos reagir, já não só como visados ou incomodados, mas apenas como “habitantes” deste mundo do excesso, da mediocridade e do anonimato? Com indiferença e desprezo, deixando passar o tempo para que a regeneração do exemplo funcione? Com activismo militante e preocupado, chamando a atenção e também denunciando as perversões? Esperando pelas “autoridades” e pelo “Estado de Direito”, que parece apostado em convidar permanentemente à impunidade?

Vejo – creio que com a lucidez que procuro partilhar com tantos outros – que todos estes passos malignos, que se padronizam depois de tantas outras iniciativas benignas, apenas farão construir o caminho para o abismo. Um abismo feito de ódio – que sempre gera irreversibilidade –, de xenofobia – no seu sentido grupal mais amplo –, de preconceito, de suspeição e, no fim, de violência. Já agora, nesta época, valia a pena pensar neste mundo que nos vão impondo dia após dia.

 

Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto.

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