The Handmaid’s Tale. Um conto de fadas para tiranos

The Handmaid’s Tale. Um conto de fadas para tiranos


A série que marcou a televisão em 2017 chegou a Portugal. Sem spoilers, lançamos um olhar sobre a adaptação de um romance distópico que vai colocá-lo de castigo, horas, a pensar sobre as coisas que hoje temos e amanhã poderão ser a matéria dos nossos sonhos


Mesmo se já traz fisgada alguma tragédia, e ainda que se meta por caminhos menos percorridos, a escrita de ficção tem por hábito uma certa ordem: se por um instante nos causa pavor, logo corta a acidez compensando com algo mais doce, um sinal de esperança. E, não raro, acomoda-se. Os autores estabelecem as condições de uma trégua que o leitor aceita, este descalça-se, o autor passa-lhe os chinelos, a chávena quente de chá e um cobertor. E mesmo se lhe descreve cenas de faca e alguidar, crimes tenebrosos ou verdadeiras atrocidades, desenha em volta um cordão sanitário.

Não é o que se passa com a adaptação do romance de Margaret Atwood, “The Handmaid’s Tale”, a série de televisão. Por uma vez, a provocação não se fica por arranhadelas e beliscões, o desconforto instala-se com algum nervosismo e uma bateria de calafrios. Reside algures nestas linhas a diferença que isola esta produção e a torna especialmente relevante. É certo que, em abril, quando a série estreou, e num momento em que a nova presidência dos EUA tinha já baixado a temperatura na sala e criado a tensão, elevando a ansiedade da audiência norte-americana, estavam reunidas as condições para que esta ficção “especulativa” – como a definiu a autora, recusando enquadrá-la no género da ficção científica – a levasse aos arames. Ainda assim, havia algo de mais insidioso nesta alegoria, um aviso que ia mais longe do que a denúncia das tão sensíveis circunstâncias do presente.

Através do serviço de subscrição Nos Play, a série do Hulu – serviço de streaming que, ao contrário da Netflix e Amazon, não opera em Portugal – chegou ontem ao nosso país. Depois de se tornar na primeira série de um serviço streaming a vencer o Emmy de Drama, “The Handmaid’s Tale” tornou as coisas bem mais interessantes para aqueles que estão pouco interessados nos delírios fantasistas, mesmo se sanguinários, de séries como “A Guerra dos Tronos” ou “The Walking Dead”. Descendo alguns degraus nas trevas, esta adaptação do romance distópico de 1985 torna plausível um retrocesso drástico que nos deixaria de novo à mercê da moral ultra-conservadora dos espíritos a quem nada agrada tanto como ditar onde começa e acaba a virtude, os comportamentos que são próprios e tudo aquilo que possa ofender a sensibilidade do Deus lá das suas conveniências, sempre pintado à imagem de um neurasténico, sempre de hábito no andar de cima, espiando tudo e todos, com uma lupa de fritar miolos.

Podia bem ser ilustrada entre nós como uma nova era salazarista, um regresso à pátria ditosa dos nossos mais mesquinhos espíritos. E o certo é que nunca nos faltará essa reserva moral, esse “coio de inchados zeros vencedores, de medíocres maus, de furta-cores, de lázaros” para recambiar-nos de volta aos tempos do mofo, de vivermos debaixo d’algum nariz mais sensível, e a um espirro, a uma denúncia de termos a vida feita num oito. Podia ser Portugal, mas passa-se nos EUA, numa dessas revoluções que nos atiram sempre para um lugar estranhamente familiar. Este chama-se Gilead, e é o decalque dessa estirpe particular de obscenidades que produzem em nome da virtude os regimes totalitaristas, em que o poder gosta de vestir a pele de um sacerdócio, e temos umas figuras severas, um género de bicho de convento a estrafegar a liberdade dos demais.

“The Handmaid’s Tale” é antes de tudo um retrato dessas pragas morais velhas como o mundo, das velhas tentações envergando o pano teológico. No centro temos o medo, os medos. O que inicialmente ameaça ser um talento de Atwood para a mera estereotipia, revela-se aos poucos um pesadelo inspirado na História. Não há perversão aqui que não traga às costas um saco de recordações, artefactos, ícones religiosos, caixas de música compostas de ecos que nos gelam o sangue. Um cheiro a fim dos tempos que levaria qualquer sociedade a perder as estribeiras, ameaçada pela hecatombe, com o desastre ecológico que hoje enfrentamos a ganhar uma tradução impossível de tresler. Com o futuro da espécie na linha devido a uma radical baixa na fertilidade reprodutiva, toca a sirene para os espíritos que atribuem aos humores de Deus a sorte do mundo. Daí, é claro que, em face da sua ira, a solução é retomar o bom e velho puritanismo. Voltamos à sociedade patriarcal, esta gozando do estímulo de uma austeridade já não imposta pelos vícios da desigualdade económica, mas por uma crise dos recursos planetários.

Quando a estética renuncia à sua função recreativa e se submete também ela a uma ordem de funções, o nosso inconsciente percebe que isto é com ele. Esta é uma série com a qual dialogam os nossos pesadelos. Elas vestem um código: vermelho, verde ou azul. Elas servem para procriar ou são empregadas ou esposas. Servas em distintos graus. E a razão por que esta série é tão fluente no diálogo com o horror, é pela sua capacidade de apurar os sentidos para a fragilidade do vigamento social que damos hoje por adquirido. Começamos a olhar em volta e a antecipar a ordem em que cada pilar deverá ceder à derrocada.

Esta série é como ficar de castigo, lá atrás, quando éramos menores e a sensação de dependência causava enjoos, o céu e o inferno eram metáforas justas, assentes sobre os pilares de paralelos muito claros. É uma série que traduz o gosto de se estar na própria cabeça, a considerar as suas fracas hipóteses, com todo o tempo para pesar as consequências de um ato de rebeldia. Dá-nos o tempo para considerarmos os cenários que, de algum modo, possam colocar-se de novo perante nós.

Esta parafernália toda que nos cerca, este paraíso artificial consumista pode distrair e entreter, mas não apaga as suspeitas de que virá uma hora em que a fatura geral será tão alta que não teremos o dinheiro sequer para a conta da luz. No inconsciente já nos debatemos com essa sensação de derrota, já não moral, mas simplesmente de toda a lógica. À atitude estroina do esbanjador, à javardice que se festeja, sabemos de pequenos que há de corresponder um formidável castigo. Trump ainda não chega. É mais um prenúncio, mais um exemplo de que são cada vez maiores as zonas às escuras.

No ano em que parece ter-se dado um passo importante no sentido de expor e denunciar o assédio constante sobre as mulheres, as diferentes expectativas, essas desigualdades tão esquivas a análise, esta série parece sugerir como isso tudo pode revelar-se mais uma distração, quando o perigo maior é, afinal, um retrocesso estrondoso.