A RTP, serviço público de radiotelevisão, no seu Canal 1, tem um programa chamado “Linha da Frente”. Na última quarta-feira, este programa poderia ter mudado o nome para “Pelotão de Fuzilamento”.
Assistimos a um assassinato moral em direto, executado com requintes de edição e sequência de imagens, sem direito ao contraditório e com um repositório de inverdades objetivas e despudoradas. Assistimos a um facilitismo de enredo, com um filmezinho à mistura, muitas “lágrimas de mãe”, e deixando – para quem acreditasse que aquilo era verdade – uma sensação de injustiça e de raiva… contra a justiça e os magistrados.
Sabemo-la morosa, com erros e enganos. Já o afirmei por diversas vezes, pelo que estou à vontade para escrever o que escrevo. Todavia, convém não esquecer que, para cada erro ou decisão controversa, há milhares de decisões acertadas e que, felizmente, têm conduzido o país a um patamar civilizacional melhor do que no tempo em que a justiça era manipulada pelos poderes políticos ou outros.
A RTP, para quem não saiba, decidiu fazer um programa em que, basicamente, dava voz a mães e pais a quem foram retirados os filhos pela Segurança Social, e que, naturalmente, chamavam para si a justeza dos atos e a injustiça das decisões, descrevendo todos a “brutalidade” com que os filhos tinham sido tirados do lar… todos “injustamente”, claro! Por acaso, não havia uma análise de cada caso, nem era ouvida a Segurança Social ou qualquer membro das CPCJ. A reportagem “acompanhava”, muuuuuito espontaneamente, uma mãe que fazia um difícil trajeto de comboio para ver o filho (pensei tratar-se de um filme a sério, tal a maneira de apresentar as cenas), ouvia advogados que, por acaso, eram parte interessada nos processos, e a ex-bastonária da Ordem dos Advogados, que me ficou na memória por ser “ligeiramente” alérgica a juízes, mas posso estar enganado…
Depois, apresentada a injustiça gritante e Portugal como um país onde, “por uma criança não estar vacinada” (sic) se retiram crianças brutalmente aos pais, ou onde, pelos depoimentos ouvidos, basta fazer um telefonema anónimo a qualquer agente da autoridade para imediatamente os pais denunciados verem as suas crianças retiradas (o que não é verdade!), passou-se ao esquema ardiloso: tudo isto acontece, segundo a equipa de jornalistas que fez o programa, porque há um grupo de juízes que ordenam a retirada das crianças porque – ah, isso o leitor não sabia – querem colocá-las em lares de que são “donos” para receberem mil euros por mês do Estado português, ou seja, do contribuinte que estava a ver o programa e que, desconhecendo o resto, nesta fase do campeonato, ou do programa, já estava a ficar irado.
Entretanto ia-se mostrando partes de uma entrevista ao juiz-conselheiro Armando Leandro, até há bem pouco tempo presidente da Comissão de Proteção às Crianças e Jovens em Risco, criteriosamente montadas de forma a que tudo fizesse sentido… só que um sentido grotesco, mentiroso e indecente. A palavra é esta, mesmo: indecente, ou seja, sem a mínima decência. Na reportagem repetia-se, até à náusea, numa tentativa assassina de colar peças que não fazem parte do mesmo puzzle, o facto de o juiz Armando Leandro ser presidente da Associação Crescer-Ser, que tem alguns lares de acolhimento às crianças vítimas de maus-tratos e abusos físicos, psicológicos e sexuais.
No fundo, o que estava implícito (ou até explícito…) é que, digamos as coisas diretamente, o juiz Leandro fazia parte desse “gangue de juízes” e aproveitava a sua posição de presidente da comissão para “ganhar o seu”. A reportagem era tão maliciosa (as mensagens subliminares são bem conhecidas da publicidade e da tortura…) que passava de imagens de uma casa pobre com uma avó clamando que o neto de quem cuidava lhe tinha sido retirado para imagens do Casino Estoril em que aparecia “gente rica e abastada de fato e lacinho”… não mencionando que era um jantar de angariação de fundos para os lares de crianças vítimas de maus-tratos.
Bom, deixemo-nos de tretas e passemos a dizer a verdade. Conheço o juiz Armando Leandro há mais de 30 anos. Foi, com Laborinho Lúcio, Rui Epifânio, Almiro Rodrigues e outros, um dos revolucionários do Centro de Estudos Judiciários, começando a ensinar aos futuros juízes o problema das crianças vítimas de maus-tratos, numa altura em que quase ninguém falava do assunto e em que os jornalistas olhavam para o lado e consideravam, como a maioria dos portugueses, que o que se passava em casa de cada um a cada um apenas dizia respeito.
Em 1985, no serviço de pediatria do Hospital de Santa Maria, formámos, por iniciativa da dra. Maria José Lobo Fernandes, e com o dr. Leandro, o dr. Laborinho, o dr. Epifânio, a dra. Maria José Vidigal e outros profissionais, o primeiro núcleo de apoio às crianças vítimas de maus-tratos do país. Andámos por todo o Portugal a “pregar” essa nossa missão: chamar a atenção dos profissionais para os sinais e sintomas de violência sobre crianças. Em 1986, um grupo de magistrados, entre os quais Armando Leandro se encontrava, criou a Associação Crescer-Ser, para que se pudessem arranjar lares para as crianças desprovidas de um meio familiar funcional, designadamente vítimas dos piores maus-tratos que o leitor possa imaginar: queimaduras com ferros elétricos, espancamentos, queimaduras com água a ferver, rasgões de orelhas por puxões, desfiguramentos, fraturas de todo o tipo, fome, negligência, abusos sexuais… eu sei, impressiona, não é? Mas há 30 anos, Portugal dormia relativamente a estes assuntos e havia pessoas, como o juiz Leandro, que recusavam ser passivos e cúmplices.
Escassos anos depois, em 1989, a ONU aprovou a Convenção sobre os Direitos da Criança, e Portugal, por ação também do juiz Armando Leandro, foi um dos primeiros países a ratificá-la.
O juiz Leandro continuou a sua luta, com uma enorme abnegação, prescindindo de tantas e tantas horas do seu lazer e vida familiar, gratuitamente, e foi, durante 12 anos, presidente da Comissão Nacional (sem remuneração!). Simultaneamente era presidente da Crescer–Ser e dava apoio a “n” iniciativas de promoção do bem-estar das crianças, como quando foi presidente da Comissão para as Boas Práticas em Instituições de Acolhimento – fiz parte dessa comissão e trabalhei com ele diariamente.
Resumindo, o jornalismo de sarjeta, impróprio de uma RTP, pensou ter “um caso”, arranjar uma vítima para crucificar (ao estilo do circo romano) e, com ar cândido, “dar voz aos ofendidos”, esquecendo-se de que, além de manchar a honra e o bom nome de um homem, estava a destruir a credibilidade da magistratura, das CPCJ, de todo o trabalho que tem sido feito, e a branquear os maus-tratos, apresentando como vítimas pessoas suspeitas – e até provadas – de maltratarem os seus filhos.
É inenarrável o que se passou e a gravidade do que foi transmitido, terminando com um “epílogo” ridículo: o jornalista põe-se em bicos dos pés e diz que “quatro dias depois da entrevista, o juiz Leandro foi substituído”… quando o juiz Leandro, há quatro anos – sim, anos –, já tinha pedido a sua substituição, só que nem o governo anterior nem este, até agora, a tinham aceitado, como aconteceu com o dr. Nascimento Rodrigues na Provedoria de Justiça.
A RTP revelou uma faceta que não lhe conhecia, muito pouco ética, parcial e sem objetividade. Tenho pena, porque é uma estação que tem excelentes profissionais. Espero que as várias instituições de jornalistas reajam. Espero que os magistrados digam alguma coisa. Pessoalmente, não espero mais e está aqui o meu desabafo. É por aí que queremos ir? Queremos voltar aos tempos em que milhares de crianças eram violentadas, violadas, batidas e maltratadas perante a passividade geral? Eu não, e como desde há mais de 30 anos, estarei ao lado daqueles que são impolutos, incorruptíveis e homens de bem, e que se veem atacados por jornalistas da treta, por profissionais corporativistas e por pessoas manipuladas que querem, a todo o preço, limpar a imagem de crimes ou negligências que cometeram.
Bem-haja, dr. Armando Leandro, e são mais os que o admiram do que os seus reles detratores.
Pediatra, Escreve à terça-feira