A reviravolta angolana


As mudanças que o novo presidente impôs são enormes, mas podem ter sido feitas só para afirmação do poder pessoal e não por uma boa causa


1) As modificações em curso em Angola têm lógica. A cartilha política recomenda que se façam as grandes mudanças logo que se toma o poder, a fim de afirmar a autoridade. Assim fez João Lourenço ao proceder a uma purga no regime, afastando destacados membros da família Dos Santos e gente do núcleo duro do regime em todas as áreas, incluindo as militares e da segurança – tudo num conjunto de movimentos facilitados pela circunstância de o seu antecessor e padrinho estar muito doente e fora do país, agradando às multidões e mesmo a dirigentes que até há pouco veneravam José Eduardo. Em pouco mais de 50 dias aconteceram coisas impensáveis em termos de nomenclatura. Já não há dúvidas de que o que está a acontecer não é circunstancial, mas substancial. Resta saber se é uma mera mudança de protagonistas à volta dos interesses (como normalmente acontece nos regimes autocráticos) ou se se trata mesmo de uma reforma de fundo no sentido de uma maior democraticidade da sociedade angolana, tanto em termos políticos como económicos. É, no entanto, importante notar (até para relativizar alguns exageros de comunicação) que em Angola o presidente não se limita ao papel arbitral e tutelar de Portugal, tendo funções executivas ao jeito do que acontece em França, assumindo um papel de decisor nas movimentações de pessoas e nas mudanças de política. Até ver, as peças que mudam já tinham jogado outras partidas e não são propriamente novidades impolutas. Mas em processos desta natureza é sempre assim que acontece. Um dos pontos essenciais do processo em curso vai ter a ver com a justiça, nomeadamente com a eventual substituição do procurador-geral de Angola, que tem congelado qualquer investigação à corrupção interna e às suas ligações externas, nomeadamente a Portugal. Numa altura em que o petróleo volta a subir, ainda que ligeiramente, João Lourenço tem espaço e apoios para criar uma nova realidade. Mas importa ver se ele pretende apenas uma afirmação pessoal, apoiado numa clique de seguidores fiéis que substituam os de José Eduardo, ou se o movem verdadeiramente propósitos mais nobres, de desenvolvimento e até de reconciliação nacional, no respeito por valores mais democráticos, menos injustos e mais distributivos. Se assim for, João Lourenço poderá ficar na História positivamente. Se não for, será simplesmente mais um dos muitos ditadores que África gerou e continuará a gerar.

2) Apesar da grande proximidade entre os dois países e, sobretudo, entre muitos dos seus cidadãos, unidos por laços de toda a espécie, a informação noticiosa que nos chega sobre Angola é escassa. Nos últimos dias valeu-nos localmente o trabalho de Carlos Rosado de Carvalho, que explicou imparcialmente o alcance das decisões presidenciais em intervenções que fez nas televisões portuguesas, uma vez que estas não têm jornalistas dos seus quadros de Portugal colocados em Luanda permanentemente. Foi um serviço inestimável que Rosado Carvalho, enquanto profissional do jornalismo, prestou à opinião pública portuguesa, pois o panorama de cobertura é desolador, com a honrosa exceção da Lusa e da RDP/África, apesar das limitações que esta tem no terreno e na retransmissão das suas emissões. Não é aceitável que a informação sobre um país que tem a importância de Angola para Portugal esteja limitada a fontes internas, por mais sérias que elas sejam.

3) “Crónica de uma Amizade Fixe” é um livro de Vítor Ramalho que relata 30 anos de convivência permanente com Mário Soares e que sai por estes dias, quando se assinala mais um aniversário do nascimento do ex-Presidente. É um relato pessoal, próximo, raro mas essencial para quem queira compreender melhor as muitas facetas de Mário Soares e a sua indiscutível inteligência pessoal e política, reconhecida até por quem dele se afastou ou o detestou sempre. Vítor Ramalho foi um amigo, um amparo e uma testemunha próxima que agora, com talento discreto e respeitador, nos relata momentos essenciais. Há amizades que ficam escritas em testemunhos notáveis. Esta é uma delas.

4) Segundo a imprensa, passaram 99 anos sobre o armistício que pôs termo à Grande Guerra sem que a data tenha sido assinalada oficialmente em Portugal. Milhares de portugueses impreparados, desinformados e sem treino foram atirados para o conflito e usados verdadeiramente como carne para canhão. Todos os países participantes naquela guerra celebram anualmente os seus mortos. Os vencedores, entre os quais está Portugal, fazem-no sempre de forma especialmente solene. Por cá, nada se viu. Para o ano, no centenário, haverá por certo muitos discursos de circunstância. Há acontecimentos que nunca devem deixar de ser evocados para que jamais se repitam. É isso que cria valores que, neste caso, são simultaneamente patrióticos e antinacionalistas.

 

Jornalista