Na semana passada dissertei aqui sobre o bom senso enquanto qualidade cívica.
Não poderia adivinhar, naturalmente, como tal reflexão se mostraria atual ante a notícia da interrupção de dois velórios por ordem do MP.
Num caso destes, é necessário saber distinguir entre as inevitáveis exigências legais de uma investigação judicial e a forma como as autoridades se devem comportar ante a circunstância de os velórios das vítimas estarem já a decorrer: é uma questão de bom senso.
A obrigação da realização de tais exames forenses, por necessidade de indagar das reais causas das mortes, não devia ter impedido – antes deveria ter determinado – um cuidado especial na comunicação de tal exigência aos familiares das vítimas.
A circunstância de, além disso, os familiares das vítimas terem dado início, sem objeções oficiais, às tradicionais cerimónias fúnebres, mais justificava um tal cuidado e uma atenção adicional.
A questão deve ser, portanto, analisada do ponto de vista do bom senso, mas tem também de situar-se no conhecimento e no cumprimento de regras de procedimento cívico que, devendo exteriorizá-lo, contribuem, em todas as circunstâncias e sobretudo quando é menor a sensibilidade pessoal, para uma sã convivência em sociedade.
A educação dos cidadãos para a forma como devem relacionar-se uns com os outros foi, durante muitos anos, tarefa fundamental das famílias e, a nível institucional, primeiro das igrejas, depois das escolas públicas e, ainda, em muitos casos, das associações desportivas e culturais.
O crescente isolamento das pessoas, o definhamento do convívio próximo entre vizinhos e companheiros de trabalho que o modelo socioeconómico atual produziu, bem como a confusão que se foi fazendo entre regras amáveis de conduta social e convivialidade cívica e formas antigas de submissão e vassalagem, erodiram parcialmente uma linguagem de convivialidade civilizada que a todos unia e, de algum modo, protegia.
É certo que muitas dessas regras revelavam ainda traços de subordinação e de diferenciação de classe que contribuíam para a manutenção de laços de dependência e para o exercício de despotismos discriminatórios.
Contudo, os valores com que uma sã convivência cívica deve expressar-se não podem, nem devem, ser abandonados ou menosprezados por estigmas que algumas condutas e fórmulas de expressão de convivialidade ultrapassadas e humilhantes veiculavam.
Que a democratização rápida e por vezes brusca das relações sociais possa ter conduzido, por tais razões, a uma rutura e a um sucessivo vazio, no que respeita a regras de urbanidade com que os cidadãos devem relacionar-se entre si, é uma preocupação que deve inquietar todos os democratas.
Que, paralelamente ao apagamento de uma pedagogia do civismo antes desenvolvida pelas instituições tradicionais, não tenha sido possível reinventar e estabelecer normas de conduta atuais e civilizadas que permitam aos cidadãos manifestar, em todas as circunstâncias, o respeito devido de uns pelos outros deve inquietar quem tem por missão organizar e gerir o poder democrático.
Essa deveria ser, também e antes do mais, uma preocupação das escolas em que estagiam os que querem exercer funções de soberania ou de serviço público da República.
Numa democracia – trate-se das relações de serviço público ou do setor económico privado –, o exercício do poder ou das funções hierárquicas deve ser ainda mais exigentemente amável na forma como se expressa.
Bom senso e condutas respeitosas no relacionamento entre cidadãos constituem também uma garantia contra o arbítrio e a prepotência: devem ser, por isso, uma exigência democrática.
P.S. Esta reflexão aplica-se igualmente ao jantar no Panteão.
Jurista, escreve à terça-feira