Entregues a si próprios


O colapso do Estado como garante da proteção dos cidadãos é a implosão da arrogância discursiva de quem ainda há pouco afirmava que tudo tinha sido feito na reforma do socorro e do combate aos incêndios florestais


A solidão não é apenas o resultado de uma vontade própria, pode resultar das circunstâncias, das ações e das inações dos poderes e das comunidades.

A fita do tempo, não apagada por algum responsável nacional da Proteção Civil, regista que, em 13 anos de atentados terroristas na Europa desde 2004, só por duas ocasiões (Madrid-2004-191 mortos e Paris-2016-130 mortos) num total de 20 ocorrências se lamentou a perda de mais vidas do que nos incêndios florestais em Portugal, em 2017. Mais de cem mortes!

O colapso do Estado como garante da proteção dos cidadãos é a implosão da arrogância discursiva de quem ainda há pouco afirmava que tudo tinha sido feito na reforma do socorro e do combate aos incêndios florestais, faltava apenas a reforma da floresta; é a derrota de quem insistiu em fazer mudanças e experiências no dispositivo de proteção civil em vésperas da fase crítica e a prova de que a organização do Estado precisa de deixar o paradigma da organização estática, indiferente às dinâmicas e às realidades. O desnorte deu lugar ao disparate nos simbolismos, nos discursos e na ação.

Como é possível alguém dizer que os cidadãos não podem ficar à espera dos bombeiros e dos aviões, que uma demissão seria meio caminho andado para umas férias não gozadas ou que é infantil demitir uma ministra que foi incompetente na gestão do atual modelo de proteção civil? Alguém acredita que quem foi incompetente na gestão do atual modelo será competente na concretização das conclusões dos relatórios sobre Pedrógão? Estão os cidadãos entregues a si próprios perante tantas falhas, incompetências e desinvestimentos do Estado? Entregues a si próprios com que formação e informação? Nestas como noutras áreas das funções do Estado, as respostas estão configuradas como há décadas, imunes à desertificação do país, indiferentes às dificuldades do voluntariado e do financiamento das corporações de bombeiros e estáticas perante as mudanças de circunstâncias terrestres e meteorológicas. É o mesmo “deixa andar” que acontece na segurança, até ao dia em que corre mal. E, na proteção civil, tem corrido muito mal. Não há atenuantes que justifiquem o descalabro dos mais de cem mortos, a área ardida e as suas consequências sociais e económicas para as comunidades. A remoção da ministra da Administração Interna a seu pedido, sem admissão de responsabilidade política ou pedido de desculpa aos portugueses, por si só, não é garante de mudança. É apenas uma consequência da ausência de liderança política quando as manigâncias da habilidade política são insuficientes para a realidade.

Aliás, esta fragilização do papel do Estado na proteção e socorro, por maiores ou menores que possam ser as responsabilidades cívicas dos cidadãos, não deixa de ser inacreditável quando assistimos às opções orçamentais para 2018 de reforço da despesa na função pública. Se, por agora, haverá disponibilidades para os rendimentos de alguns, não chega para o resto, mesmo onerando os que mais estão entregues a si mesmos, na atividade privada ou com a emissão de recibos verdes. Depois da destruição do mito da infinidade dos recursos públicos, apesar das cativações, resgatou-se agora a histórica perceção do “encosta-te ao Estado”, sem olhar para a sustentabilidade, para a curva da demografia ou para um horizonte além do dia de amanhã. A opção é reforçar a dualidade entre o público, apoiado, e o privado, mais ou menos deixado entregue a si próprio. Logo agora, que precisamos de coesão para trabalhar em conjunto para a consolidação do crescimento económico.

Noutra órbita, foi finalmente formalizada a acusação ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, perpassando a ideia de que está cada vez mais entregue a si próprio, “a lutar pela sua verdade”, na versão daqueles que, ao longo de anos, beneficiariam dos seus apoios diretos e indiretos para aceder ao poder interno no PS. Para algumas amnésias saltitantes, foi a defesa do seu legado governativo que inspirou e induziu muita da agitação política registada entre 2011 e 2014, foram muitos dos protagonistas dos silêncios atuais e do exército de ativistas do atual governo nas redes sociais que estiveram na primeira linha dessas desestabilizações, Não deixa de ser fantástico que quem tanto clamou por maior defesa pública do legado de Sócrates, por maior ação e intervenção política com a chancela do PS, esteja agora remetido ao silêncio, empenhado em demarcações artificiais ou absorvido nas tarefas da atual solução de governo, como se nada se tivesse passado. Há comportamentos e provas que não precisam da justiça para serem evidência. O Estado de direito e a democracia precisam de celeridade no esclarecimento, na separação do trigo do joio e na afirmação de um caminho que não faça com que a desilusão com o modus operandi da sociedade, do sistema político e dos partidos políticos conduza a mais alheamentos.

As funções do Estado, em especial, as funções de soberania, não podem, no essencial, estar dependentes de circunstâncias, de governos ou de humores. Têm de ter uma sustentabilidade imperturbável em que os cidadãos têm um papel a desempenhar. Assim o Estado não falhe e os cidadãos tenham as informações e as competências básicas para agir.

Em 2017, na Europa, os portugueses não podem ter a sensação e a confirmação de estarem mais ou menos entregues a si próprios, como o comprovam as mais de cem mortes em incêndios florestais. Foi contra esta insustentável falência do Estado que falou o Presidente da República, sintonizado com o país, desencantando alguns embevecidos destes dois anos, alheados dos poderes presidenciais.

A gratidão com o trabalho das mulheres e dos homens dos bombeiros voluntários e dos dispositivos da Proteção Civil tem de ser um sentimento consequente: no reconhecimento e nos meios.

NOTA FINAL

O país não é igual, tem de ter respostas em função do risco e da ambição de se querer transformar a realidade de forma sustentável. Tem de haver rotinas para as ocorrências usuais e para os cenários extremos. Agora foi com os incêndios, importa agir no risco sísmico, que não está acautelado.

Militante do Partido Socialista