O tratamento político-mediático das questões da justiça e dos tribunais foi sempre campo fértil para discursos políticos empolgados e alienantes.
Nada, porém, como agora.
Quem quer satisfazer a apetência por temas fortes e alimentar assim discursos políticos populistas não precisa já de procurar na imprensa especializada no crime ou nos tabloides e canais digitais correspondentes fonte de inspiração.
Basta-lhe para tanto visionar um noticiário de TV (muito menos na rádio, valha-nos isso) ou folhear mesmo alguns diários de referência.
É certo que, na maioria dos casos, o empolamento mediático dos problemas e casos mais hediondos que os tribunais tratam acontece quase sempre quando as tensões político-sociais aparecem mais esbatidas e o confronto político-partidário se abstrai das sempre existentes, mas nem sempre oportunamente visíveis, contradições políticas essenciais.
Por isso, quando essa espécie de férias na luta política frontal acontece por qualquer circunstância, o sistema político-
-mediático faz emergir, como se de uma espécie de campeonato político de segunda divisão se tratasse, os crimes e as situações sociais de que os tribunais tratam.
Até agora aparentemente benigno, este enfoque político-mediático em tais assuntos (muitos dos quais revelando, na verdade, problemas relevantes, mas secundarizados quando convém) começou mais recentemente a ser usado de uma feição nova e por novos protagonistas.
O tratamento de tais problemas começou, de facto e pela primeira vez, a integrar um desígnio de transformação político-cultural que se quer, não por acaso, direcionado a questionar muitos dos primados do regime democrático que foram edificados e sedimentados desde o 25 de Abril.
É verdade que, mesmo depois da Revolução de Abril, sempre houve intervenções marginais clamando pela reintrodução da pena de morte, pela perpetuidade e endurecimento das penas de prisão e por um certo robustecimento da autoridade; o mesmo é dizer, pugnando pela redução das liberdades e garantias constitucionais.
Tais clamores, todavia, costumavam ser liminarmente contidos pelos responsáveis das principais forças políticas democráticas – pessoas com créditos firmados na luta pela democracia e de gabarito intelectual reconhecido –, acabando por se extinguir sem verdadeiramente conseguirem influir na cultura política dominante e se afirmarem popularmente.
Nos piores casos, as autoridades religiosas e os meios académicos eram também chamados a pronunciar-se e, desse modo, o sistema político e constitucional isolava democraticamente os paladinos de tais culturas e medidas autoritárias.
Ora, é precisamente esse bloco político e cultural democrático que parece haver quem hoje se sinta tentado a desfazer.
Saber se quem o faz age por convicção ou mero oportunismo não chega a ser verdadeiramente relevante.
O perigo que decorre de tais intervenções, quaisquer que sejam as intenções, não sendo realmente o mesmo, é sempre suficientemente grave.
Se de uma intervenção convicta se tratar, assistimos então, na verdade, a uma tentativa de mudança de paradigma no seio do regime democrático e partidário português.
Se for mero oportunismo, então importa prevenir os responsáveis de que é perigoso brincar com o fogo.
Os discursos populistas são como os incêndios: fáceis de atear, mas de difícil previsão quanto à extensão e consequências.
O mundo vive hoje demasiadas tensões perigosas, quase todas alimentadas pela demagogia e pelo populismo.
Portugal tem-se mantido imune a tais fogos.
Urge, pois, que os que se reclamam da democracia e da Constituição circunscrevam os incêndios e isolem os incendiários populistas que os ateiam.
Escreve à terça-feira