“As touradas não vão acabar. Vejo os miúdos virem aqui fingir que estão a tourear”

“As touradas não vão acabar. Vejo os miúdos virem aqui fingir que estão a tourear”


A tourada está novamente a provocar polémica, desta vez por causa das declarações de Daniel Deusdado, diretor de programas da estação pública, que afirmou que, apesar das boas audiências televisivas, o canal não vai transmitir mais corridas além das agendadas. O i foi medir o pulso à Moita e a Vila Franca


É fácil encontrar a praça de touros de Vila Franca de Xira. Para quem vem de Lisboa, a Praça de Touros Palha Blanco é a primeira coisa que se vê ao entrar na vila. Entalada entre a linha de comboio e o cemitério, a praça está, por estes dias, quase ao abandono: nesta zona não há sinais de comércio e até o restaurante e o museu etnográfico, que se encontram dentro do recinto, estão fechados, como nos explicou o arrumador de carros José Júlio – a única vivalma que por aqui se encontra. Também ele reconhece que esta zona está abandonada: “As pessoas só vêm cá quando há festas.”

Agora, a praça está impecavelmente pintada de branco e amarelo, mas José Júlio não esquece o dia em que manifestantes antitaurinos vandalizaram o recinto e, a vermelho, escreveram impropérios nas paredes e no monumento do toureiro que está à entrada. “Quem gosta, gosta. Quem não gosta, não venha porque não é bem-vindo”, desabafa.

Já no centro de Vila Franca, começa- -se a ver vida. Cada montra ou pedaço de parede livre é aproveitada para colar cartazes taurinos, com largo destaque para as festas de Coruche, Alverca e Alcochete, que se avizinham. Nas ruas há tábuas a proteger portas e janelas das marradas dos animais.

Alice Lambuça já vende artigos tauromáquicos na sua pequena loja há mais de 30 anos e não tem dúvidas de que, por aqui, o negócio tem sido sempre a piorar: “De há 30 anos para cá, há menos negócio aqui para a loja. A crise é grande e talvez esses senhores que andam a apregoar aí essas coisas também tenham ajudado…”, diz, referindo-se às associações de defesa dos animais e antitouradas.

Nascida e criada em Vila Franca de Xira, Alice habituou-se a ir ver as touradas desde miúda e agora é com pena que vê a tradição a ser atacada: “A tourada é cruel? Há muita coisa cruel. Mata-se porcos, mata-se frangos… eu não acredito que eles sejam todos vegetarianos. Palavra de honra, não acredito. Isso é coisas de meninos parvos. Alguns nem sabem o que é um touro”, refere, sem largar o pedaço de tecido verde que vai cosendo.

“As touradas não vão acabar, com certeza. Então eu vejo os miúdos a virem aqui comprar roupa para forcados. Alguns chegam aqui e começam a brincar com os panos de cozinha, a fingir que estão a tourear”, diz, já a sorrir.

Alice vende tudo, desde os sapatos do campino até ao barrete, “tudo feito à mão”. Um traje completo de campino custa 445 euros. Mas nem as touradas têm ajudado o seu negócio, só as festas: “Para os comerciantes, não faz grande diferença haver corrida ou não, as pessoas que vêm só para as corridas não vêm fazer compras. Quando há as festas do Colete Encarnado e da feira, aí sim, já se nota mais gente. Nos dias de festa nota-se logo.”

Para Alice, a culpa também é da desertificação: “Vila Franca está a ficar deserta. Se houvesse mais iniciativas, ajudava a terra. Não digo só touradas, mas mais coisas. Nós vivemos essencialmente do Colete Encarnado e da feira. Até outubro, está parado. Nesta zona da praça de touros ainda é pior, há ali o cemitério, se calhar é por isso”, graceja.

Já Adelaide, dona do restaurante Espeto Real, não vê motivos para dramas. “Nos dias de tourada vêm muitos forasteiros. Nas festas, então, isto é uma loucura, estamos a falar de 70 ou 80 mil pessoas que bombardeiam Vila Franca”, refere com um sotaque transmontano. Nascida em Vila Real, mudou-se para esta zona há 39 anos. Em Trás-os-Montes ou Vila Franca, a paixão pelos touros é a mesma: no norte não perdia uma garraiada e aqui não perde uma largada.

“Touradas em vias de extinção? Aqui?! Aqui não!”, exclama, acrescentando: “Temos de manter as nossas tradições porque sem elas deixamos de ser portugueses.” O Campo Pequeno, em Lisboa, serve de comparação: “Sem a tourada, aquilo passa a ser o quê? O circo?”

E as opiniões fortes de Adelaide não se ficam por aqui: “Criamos os animais para os comermos e para nos divertirmos com eles. É verdade ou não é?”

Em relação à polémica da semana, Adelaide não tem dúvidas: “Claro que há discriminação contra as touradas. Então porque é que se transmite um jogo de futebol onde anda tudo à pancada? Na tourada, ninguém anda à pancada. Para o futebol há tantos milhões e para a tourada ninguém sequer quer transmitir na televisão.”

Mário, de 79 anos, orgulha-se de ser o talhante mais antigo do mercado municipal de Vila Franca de Xira. Encara-nos logo sem rodeios: “Então mas vocês são aficionados? Ou são daquelas organizações que vêm para aqui fazer barulho por causa dos touros?”

“Eu cá adoro ir às corridas. Quando era novo ia todos os dias às festas de Badajoz. Depois do almoço saía aqui do talho, pegávamos no carro e [desliza as mãos rapidamente uma pela outra] lá íamos ver as corridas de touros”, recorda. Agora, a saúde já não permite tais andanças.

Para o talhante, a tradição está a perder-se: “Os jovens já não vão muito aos touros.” Pessimista, explica: “Daqui a dez anos já não estou cá, mas a tourada é capaz de desaparecer. Agora está tudo parado, aqui o mercado de Vila Franca de Xira, que era um dos melhores, está neste estado [e mostra a paisagem quase desértica do mercado]. Está tudo a acabar. Aqui não têm iniciativa, não fazem nada…”

Opinião contrária tem Maria João Carraça, chefe da divisão de Cultura da Câmara Municipal de Vila Franca: “Somos um município que não para na produção de eventos.” A autarquia reconhece o peso dos eventos de cariz taurino: “O impacto das atividades taurinas em Vila Franca de Xira é bastante notório ao longo do ano e manifesta-se particularmente na Festa do Colete Encarnado e na feira anual. São eventos que trazem muitos milhares de pessoas, portugueses e estrangeiros. Evidentemente que isto é muito importante para o comércio.”

“De há dez anos para cá, estes eventos têm vindo a crescer e há um maior número de visitantes”, explica Maria João Carraça, acrescentando que a vila não está dependente da tauromaquia: “A vila tem outros polos culturais que também trazem muita gente, há público para tudo.”

“Havia uma revolução se acabassem com a tourada na Moita” Ao contrário do que acontece em Vila Franca de Xira, na Moita, a praça de touros está no meio da vila, pouco visível para quem não conhece a terra.

Eram três da tarde quando Orlando voltou dos bastidores da praça de touros da Moita para dar os últimos retoques na pintura. “Temos corridas em setembro e temos de arranjar isto”, diz o coordenador da Praça de Touros Daniel do Nascimento.

Rodeada de pequenos prédios, a praça de touros está em processo de renovação, como indicam os andaimes erguidos na parte exterior do recinto. Ao aproximarmo-nos, somos imediatamente convidados a conhecer o interior da praça. A visita guiada vai até ao backstage, onde os touros são preparados antes de entrarem na arena, um estreito labirinto de portas e alavancas.

Nascido e criado na Moita, Orlando iniciou-se nas lides tauromáquicas com apenas 13 anos, por iniciativa do tio, que o colocou como arrumador de praça.

Orlando reconhece a importância que a tauromaquia tem para a terra: “Durante as festas temos aqui uma quantidade de aficionados que até mete medo. Vem muita gente de fora e revitaliza os cafés e restaurantes”, começa por explicar. “Olha, aí vem o toureiro!”, interrompe para apresentar quem chega. E quem chega é José Maria Bettencourt.

O cabo do grupo de forcados da Moita sempre foi aficionado e explica de onde vem o gosto: “Vinha sempre às corridas desde pequenino com o padre Vítor Melícias, que é amigo da minha família, e foi ele que nos foi pegando este vício da afición.” Aos 14 anos começou a envolver–se mais a sério e hoje, aos 24, é o líder do grupo de forcados.

José Maria é perentório na resposta sobre a polémica com a RTP: “Claramente que há uma discriminação contra as touradas. Nós, aficionados, somos uma maioria. Mas, mesmo que não fôssemos, as decisões não podem ser tomadas assim. A tourada é dos espetáculos culturais que movem mais dinheiro, portanto não posso concordar com esta decisão.”

“A praça de touros da Moita tem 5500 lugares e agora, na última corrida de maio, esteve praticamente esgotada. Um espetáculo esgotar 5500 bilhetes não é fácil em nenhum ramo da cultura”, diz. Para José Maria, esse facto leva a crer que, “daqui a dez anos, a tourada vai estar mais viva que nunca”. E continua: “A tourada não está para acabar, de todo. Havia uma revolução se acabassem com as touradas na Moita. Se tirassem daqui os touros, as largadas e as corridas havia uma revolução, a Moita perdia a sua identidade.”

Também para o cabo, a festa tauromáquica traz muito à terra: “Em dias de festa taurina, a Moita transforma-se completamente. Se não houvesse a corrida, provavelmente, as pessoas nem vinham às festas da terra”, afirma.

Em relação aos antitaurinos, José Maria acredita que a pressão para que se acabe com as corridas de touros vai continuar “por muitos anos”. “Só peço que eles aceitem o nosso ponto de vista. Há pouca tolerância da parte deles e tem havido muita da nossa parte”, explica.

É à beira-Tejo, no Clube Taurino da Moita, que se reúnem os aficionados moitenses. Juntam-se neste café para verem a tourada na televisão e para discutirem a tauromaquia. É o “cantinho dos aficionados”, como lhe chama José Maria Bettencourt. A televisão está no canal espanhol “Toro”, que transmite a repetição de uma corrida com alguns anos, e as paredes estão totalmente decoradas com temas taurinos, como boinas, quadros de toureiros, bandarilhas e fotografias de touros.

Quem nos recebe é João Curto, um antigo bandarilheiro que chegou a tourear no México, Estados Unidos e França ao lado de nomes como Sónia Matias, João Telles e João Moura. “Sempre fui grande aficionado. Vou às touradas todas e, mesmo em miúdo, fugia de casa para ir para a praça. Não falhava uma. Lembro–me de os outros miúdos andarem na praça a brincar e eu sentava-me na bancada e era incapaz de sair de lá, só para ver a corrida”, recorda.

João Curto não se mostra otimista em relação ao futuro das touradas: “Cada vez isto está pior, o que eu tenho visto é que essas associações todas que são contra o touro têm muito dinheiro e vão minando tudo. Qualquer dia isto é como nos EUA, em vez dos arpões têm de se usar umas ventosas.” Ainda que a Moita se continue a interessar, “cada vez há menos afición”, suspira.

“Reconheço que é um espetáculo um bocadinho bárbaro, mas…”, deixa no ar. “Ninguém tem de maltratar os animais, mas um boi é um boi, uma vaca é uma vaca, um cão é um cão e um gato é um gato. Agora inventam coisas que não existem, os sentimentos e essas coisas… isso não existe”, diz.

João Curto e José Maria Bettencourt acabam por dizer quase em coro: “O que eles querem fazer passar é que nós somos uns bárbaros, e isso não é verdade.”