As eleições autárquicas do próximo dia 1 de outubro ajudarão a dissolver dúvidas novas, geradas às mãos da implosão do arco da governação. Pela sua importância na gestão da coisa pública, e por todas estas inéditas e intrincadas curiosidades, vale a pena escrever sobre o assunto.
Se quanto mais tempo decorre de governação socialista, com apoio dos parceiros à nossa esquerda, mais se estende a lista de conquistas financeiras, económicas e sociais, há na dimensão do papel do Estado algo de verdadeiramente estruturante que merece ser destacado: o reforço convicto e estratégico da confiança no poder local democrático.
A este propósito valerá a pena, neste momento de disputa eleitoral, avivar memórias. A cobro do manto desculpabilizante da intervenção externa, a governação de PSD e CDS cravou três profundas estacas no coração do poder local. Analisemo-las uma por uma.
O ex-ministro Miguel Relvas, no auge da sua influência sobre Passos Coelho, urdiu e fez aprovar um quadro legislativo de espírito abjetamente tutelar e preconceituoso. A lei dos compromissos, repudiada por autarcas de todas as forças políticas e já flexibilizada por António Costa, criou um quadro altamente restritivo da autonomia de gestão dos municípios, ao mesmo tempo que semeou um insuportável clima de desconfiança sobre estes órgãos de soberania.
A campanha pela modelação de um poder local mais condizente e amestrado pelo ensaio liberal então em curso teve na reforma administrativa estival capítulo. A redução do número de freguesias, mandatada a régua e esquadro, a despeito da história, vontade popular ou de um mínimo de razão inteligível, criou megajuntas de freguesia, superiores em dimensão a muitas cidades do país, desferindo um duro golpe na gestão de proximidade que estas poderiam executar. Volvidos poucos anos, é hoje claro que não houve poupança nem ganho algum. Por este motivo, e por muito que seja o esforço nessa busca, dificilmente encontraremos um candidato de direita que ainda a defenda.
Não menos relevante, foi no período de governação da direita, muito para além da troika, que se registaram os maiores cortes nas transferências de verbas para os municípios. A este propósito permitam-me que me detenha na constatação do óbvio ululante: se as populações não se evaporaram e as necessidades dos territórios não deixaram de existir, o dito ajuste não foi mais do que a mera delapidação da qualidade do serviço público prestado aos povoadores da pólis. Conforme relevava recentemente a secretária-geral adjunta do PS, Ana Catarina Mendes, o atual governo reforçou, em sede de Orçamento Geral do Estado, as transferências para as autarquias em 79 milhões de euros, devolvendo-lhes capacidade financeira para uma gestão ao serviço das pessoas
Atendendo a esta retrospetiva, foi quase insuportável assistir à forma como, no passado sábado, em Barcelos, o presidente do PSD, saudando os municípios que antes castigou, experimentou uma tentativa despudorada de se apoderar de um trabalho que não foi seu, saltando num ápice desta para outra falsidade: “O atual governo travou fundos europeus por opção”, anunciou sem visível vergonha.
Tomando por verdadeira a premissa de Nicolau Maquiavel, em “O Príncipe”, de que “os homens em geral julgam mais pelos olhos que pelas mãos, porque o ver toca a todos e sentir toca a poucos”, permitam-me que sobre a matéria dos fundos comunitários vos escreva como é e não como nos querem fazer parecer.
Quando o governo do PS tomou posse estavam executados 4,5 milhões de euros de fundos comunitários do Portugal 2020; à hora a que escrevo já estão executados 900 milhões, um pequeníssimo incremento de 20 000%, apenas comparável à falta de descaramento e memória de quem hoje nos aponta atabalhoadamente o dedo. Vale a pena registar, com tristeza ou ironia poética, que são exatamente os municípios, que durante quatro anos e meio Passos castigou e diminuiu, que hoje se constituem como parceiros indispensáveis para a alavancagem do investimento público português, sendo responsáveis por 48% deste enorme desígnio nacional.
Ao contrário do que alguns acreditam, as eleições autárquicas vão mesmo testar a solidez dos acordos parlamentares e a força da oposição.
Até onde levará um Bloco, sem expressão autárquica, as suas exigências orçamentais? Que caminho tomará o PCP se, por exemplo e como espero, a candidatura à qual pertenço venha a derrotar a CDU no Barreiro? Continuará o CDS a retirar o tapete ao antigo parceiro de coligação? Subsistirá a liderança do PSD a um previsível desastre?
Neste quadro de incertezas, apenas uma coisa é certa: com o processo de descentralização de competências em curso, as autarquias locais serão cada vez mais um ente central de um Estado devidamente reformado e, consequentemente, eficaz. Ao contrário da caricata folhinha que Paulo Portas nos trouxe um dia, António Costa aposta nesta reforma estrutural do Estado acima de qualquer circunstancialismo eleitoral.
Se as interrogações fazem parte da democracia, permitam-me exclamar o seguinte: as vacas podem não voar, mas Portugal está melhor e os portugueses também. Assim, vale a pena.
Deputado do PS