Uma aposta? A antiga chanceler será a nova em setembro


Depois de ler as atas da Stasi relativas a Angela Merkel, limpas, Kohl convenceu-se de que ela deveria integrar o governo. Que o novo Ministério da Juventude e Condição Feminina fosse quase esvaziado de competências fazia parte dos cálculos do presidente da CDU. O animal político Kohl farejou a substância de que Merkel era feita…


Desde 1991, altura em que Angela Merkel se tornou pela primeira vez ministra, jornalistas, analistas e biógrafos ocupam-se da pergunta “quem é Merkel?”. Uma das melhores respostas que encontrei foi a de Bernd Ulrich, no “Die Zeit”. “Wer ist Merkel? Die Kanzlerin. Was will sie wirklich? Kanzlerin sein.” (Quem é Merkel? A chanceler. O que pretende realmente? Ser chanceler.)

Se, hoje, ela é uma pessoa extraordinariamente controlada e discreta, características que a tornam para muitos estranha, pouco previsível, esfíngica, isso é resultante de uma vida entre dois mundos, duas Alemanhas. Conhecendo-se a história da divisão alemã, entende-se: nada é simples, nada é linear, não há lugar para maniqueísmos. “É muito difícil do ponto de vista atual compreender e tornar compreensível como nós vivíamos. Onde se situavam as fronteiras do compromisso que cada devia encontrar para si próprio?”

Com um perfil o mais distante possível do típico político alemão – visite-se a Haus der Geschichte e a galeria dos retratos de presidentes e chanceleres no pós-guerra, todos homens, apenas uma mulher: Angela Merkel –, fez uma carreira vertiginosa, sem paralelo na Alemanha, tornando–se a líder incontestada da nação e a chefe de governo mais antiga da União Europeia. Isto na tripla qualidade de mulher, do Leste, divorciada e sem filhos.

Contrariamente à maioria dos políticos de primeira linha dos democratas cristãos, ela não seguiu o caminho tradicional – a filiação na juventude democrata cristã, envolvimento na política local, construção de redes e contactos. Estava do outro lado do Muro. Como se explica a ascensão do “nada político”, de alguém com um perfil o mais distante possível do clássico, a mulher mais poderosa da Alemanha? Por uma conjugação de qualidades pessoais, de acasos biográficos e de uma constelação histórica ímpar.

O dia determinante para a carreira política de Angela Merkel é 30 de setembro de 1990, quatro dias antes da reunificação alemã, o dia em que conheceu Helmut Kohl, que seria o seu ídolo e mestre e com quem aprendeu aquilo que os alemães denominam “Willen zur Macht”, o desejo de poder, a mola inicial, o princípio do salto.

Kohl, o historiador, considerava que o Gabinete Federal devia refletir a nova realidade política alemã. Por isso, uma mulher do Leste, jovem, ainda para mais protestante, encaixava-se no puzzle do poder. Por outro lado, o chanceler da reunificação queria rodear-se de pessoas que lhe fossem absolutamente reconhecidas. 

Depois de ler as atas da Stasi relativas a Angela Merkel, limpas, Kohl convenceu-se de que ela deveria integrar o governo. Que o novo Ministério da Juventude e Condição Feminina fosse quase esvaziado de competências fazia parte dos cálculos do presidente da CDU. O animal político Kohl farejou a substância de que Merkel era feita e queria que ela amadurecesse para outros voos. O que ele não poderia imaginar é que, nove anos mais tarde, a dama faria xeque-mate ao rei.

Num artigo publicado no “Frankfurter Allgemeine Zeitung” a 22 de dezembro de 1999, com o partido mergulhado na mais profunda crise da sua história em virtude do escândalo em torno do financiamento partidário, Angela Merkel comete “parricídio”.

Merkel publicou o artigo sem avisar Wolfgang Schäuble, o então presidente da CDU. Num gesto que combinava virtude protestante com crueldade, a “Mädchen”(menina) de Kohl cortava o cordão umbilical do seu pai político. “Ela espetou a faca nas costas dele e girou duas vezes”, afirma Karl Feldmeyer, jornalista do “Frankfurter Allgemeine Zeitung”. Foi o momento em que, pela primeira vez, muitos alemães se deram conta da existência de Angela Merkel.

Reforça a imagem de ser feita de gelo com a resposta à crise financeira global e à crise do euro, após o colapso do Lehman Brothers. Torna-se uma figura odiada por um largo setor da opinião pública europeia. Ao seu ritmo de pequenos passos acabaria por ultrapassar as hesitações. “Merkel, que duvidou durante longos meses de que a Grécia conseguisse algum dia assumir a disciplina inerente à participação numa moeda única, acabou por reconhecer que os custos para os outros países da sua saída do euro – resultantes do efeito de contágio – seriam muitíssimo superiores aos benefícios.”

“Se o euro fracassar, fracassa a Europa”, dirá em outubro de 2011. Enquanto ia acumulando derrotas nas eleições regionais, a chanceler foi somando vitórias nos palcos da crise do euro. Mantendo um discurso pró-Europa, Angela Merkel não abdicou da austeridade e impôs aos seus pares um caderno de encargos da sua lavra. Por momentos, receou-se que a sua paciência com Atenas se esgotasse. Mas não, até aí se manteve firme na convicção europeia. De resto, Merkel não sucumbiu aos que pediam flexibilidade e tempo no combate à crise.

O ano de 2012 será lembrado como o ano em que a moeda única foi salva da implosão a que parecia condenada pela crise da dívida europeia. Foi a decisão da chanceler de manter a Grécia no euro e, mais ainda, de assumir os custos associados que permitiu fazê-lo.

Mesmo tendo em consideração todos os riscos políticos que a decisão acarretava decidiu abrir, a 4 de setembro de 2015, as fronteiras alemãs a todos os refugiados sírios que quisessem procurar refúgio em solo alemão. No dia seguinte chegariam a Munique, de hora a hora, comboios cheios de refugiados. As centenas depressa se tornaram milhares e nos cais vivem-se momentos comoventes. Milhares de alemães trazem brinquedos, vestuário, água, guloseimas. Dão, eufóricos, as boas-vindas. As cenas repetem-se nas estações ferroviárias de Frankfurt am Main e Dortmund.

A maior emergência humanitária desde 1945, a crise dos refugiados, transformou, aos olhos da opinião pública e publicada, a vilã impiedosa numa heroína global. E transformou para sempre a Alemanha. “A chanceler alemã está do lado certo da história. Num mundo global, a solução não é construir muros”, sublinhou Barack Obama.
A Alemanha e a Europa aprenderam a não a subestimar. Setembro será um mês interessante.

Escreve à segunda-feira


Uma aposta? A antiga chanceler será a nova em setembro


Depois de ler as atas da Stasi relativas a Angela Merkel, limpas, Kohl convenceu-se de que ela deveria integrar o governo. Que o novo Ministério da Juventude e Condição Feminina fosse quase esvaziado de competências fazia parte dos cálculos do presidente da CDU. O animal político Kohl farejou a substância de que Merkel era feita…


Desde 1991, altura em que Angela Merkel se tornou pela primeira vez ministra, jornalistas, analistas e biógrafos ocupam-se da pergunta “quem é Merkel?”. Uma das melhores respostas que encontrei foi a de Bernd Ulrich, no “Die Zeit”. “Wer ist Merkel? Die Kanzlerin. Was will sie wirklich? Kanzlerin sein.” (Quem é Merkel? A chanceler. O que pretende realmente? Ser chanceler.)

Se, hoje, ela é uma pessoa extraordinariamente controlada e discreta, características que a tornam para muitos estranha, pouco previsível, esfíngica, isso é resultante de uma vida entre dois mundos, duas Alemanhas. Conhecendo-se a história da divisão alemã, entende-se: nada é simples, nada é linear, não há lugar para maniqueísmos. “É muito difícil do ponto de vista atual compreender e tornar compreensível como nós vivíamos. Onde se situavam as fronteiras do compromisso que cada devia encontrar para si próprio?”

Com um perfil o mais distante possível do típico político alemão – visite-se a Haus der Geschichte e a galeria dos retratos de presidentes e chanceleres no pós-guerra, todos homens, apenas uma mulher: Angela Merkel –, fez uma carreira vertiginosa, sem paralelo na Alemanha, tornando–se a líder incontestada da nação e a chefe de governo mais antiga da União Europeia. Isto na tripla qualidade de mulher, do Leste, divorciada e sem filhos.

Contrariamente à maioria dos políticos de primeira linha dos democratas cristãos, ela não seguiu o caminho tradicional – a filiação na juventude democrata cristã, envolvimento na política local, construção de redes e contactos. Estava do outro lado do Muro. Como se explica a ascensão do “nada político”, de alguém com um perfil o mais distante possível do clássico, a mulher mais poderosa da Alemanha? Por uma conjugação de qualidades pessoais, de acasos biográficos e de uma constelação histórica ímpar.

O dia determinante para a carreira política de Angela Merkel é 30 de setembro de 1990, quatro dias antes da reunificação alemã, o dia em que conheceu Helmut Kohl, que seria o seu ídolo e mestre e com quem aprendeu aquilo que os alemães denominam “Willen zur Macht”, o desejo de poder, a mola inicial, o princípio do salto.

Kohl, o historiador, considerava que o Gabinete Federal devia refletir a nova realidade política alemã. Por isso, uma mulher do Leste, jovem, ainda para mais protestante, encaixava-se no puzzle do poder. Por outro lado, o chanceler da reunificação queria rodear-se de pessoas que lhe fossem absolutamente reconhecidas. 

Depois de ler as atas da Stasi relativas a Angela Merkel, limpas, Kohl convenceu-se de que ela deveria integrar o governo. Que o novo Ministério da Juventude e Condição Feminina fosse quase esvaziado de competências fazia parte dos cálculos do presidente da CDU. O animal político Kohl farejou a substância de que Merkel era feita e queria que ela amadurecesse para outros voos. O que ele não poderia imaginar é que, nove anos mais tarde, a dama faria xeque-mate ao rei.

Num artigo publicado no “Frankfurter Allgemeine Zeitung” a 22 de dezembro de 1999, com o partido mergulhado na mais profunda crise da sua história em virtude do escândalo em torno do financiamento partidário, Angela Merkel comete “parricídio”.

Merkel publicou o artigo sem avisar Wolfgang Schäuble, o então presidente da CDU. Num gesto que combinava virtude protestante com crueldade, a “Mädchen”(menina) de Kohl cortava o cordão umbilical do seu pai político. “Ela espetou a faca nas costas dele e girou duas vezes”, afirma Karl Feldmeyer, jornalista do “Frankfurter Allgemeine Zeitung”. Foi o momento em que, pela primeira vez, muitos alemães se deram conta da existência de Angela Merkel.

Reforça a imagem de ser feita de gelo com a resposta à crise financeira global e à crise do euro, após o colapso do Lehman Brothers. Torna-se uma figura odiada por um largo setor da opinião pública europeia. Ao seu ritmo de pequenos passos acabaria por ultrapassar as hesitações. “Merkel, que duvidou durante longos meses de que a Grécia conseguisse algum dia assumir a disciplina inerente à participação numa moeda única, acabou por reconhecer que os custos para os outros países da sua saída do euro – resultantes do efeito de contágio – seriam muitíssimo superiores aos benefícios.”

“Se o euro fracassar, fracassa a Europa”, dirá em outubro de 2011. Enquanto ia acumulando derrotas nas eleições regionais, a chanceler foi somando vitórias nos palcos da crise do euro. Mantendo um discurso pró-Europa, Angela Merkel não abdicou da austeridade e impôs aos seus pares um caderno de encargos da sua lavra. Por momentos, receou-se que a sua paciência com Atenas se esgotasse. Mas não, até aí se manteve firme na convicção europeia. De resto, Merkel não sucumbiu aos que pediam flexibilidade e tempo no combate à crise.

O ano de 2012 será lembrado como o ano em que a moeda única foi salva da implosão a que parecia condenada pela crise da dívida europeia. Foi a decisão da chanceler de manter a Grécia no euro e, mais ainda, de assumir os custos associados que permitiu fazê-lo.

Mesmo tendo em consideração todos os riscos políticos que a decisão acarretava decidiu abrir, a 4 de setembro de 2015, as fronteiras alemãs a todos os refugiados sírios que quisessem procurar refúgio em solo alemão. No dia seguinte chegariam a Munique, de hora a hora, comboios cheios de refugiados. As centenas depressa se tornaram milhares e nos cais vivem-se momentos comoventes. Milhares de alemães trazem brinquedos, vestuário, água, guloseimas. Dão, eufóricos, as boas-vindas. As cenas repetem-se nas estações ferroviárias de Frankfurt am Main e Dortmund.

A maior emergência humanitária desde 1945, a crise dos refugiados, transformou, aos olhos da opinião pública e publicada, a vilã impiedosa numa heroína global. E transformou para sempre a Alemanha. “A chanceler alemã está do lado certo da história. Num mundo global, a solução não é construir muros”, sublinhou Barack Obama.
A Alemanha e a Europa aprenderam a não a subestimar. Setembro será um mês interessante.

Escreve à segunda-feira