Tudo começa (where else?) no Facebook ou no WhatsApp, numa troca de mensagens com um “curador”, que desencadeia uma sequência de desafios lançados diariamente para instigar os jogadores – maioritariamente adolescentes – à automutilação e, na fase final, a cometer suicídio. Ainda não há nenhum caso confirmado de suicídio, mas as forças policiais de vários países estão já a investigar algumas suspeitas e os alertas nas redes sociais feitos pelas autoridades multiplicam-se. O que é verdadeiramente extraordinário neste jogo é o controlo à distância, a obediência cega e religiosa, aos comandos de uma autoridade desconhecida, sem rosto, digital, que, intermediada pela tecnologia, assume o controlo mental (e real) da vida dos jogadores.
O “i” noticiava que o filme “Nerve” teria inspirado a “baleia azul”, mas o pior resultado desta forma de manipulação da vida real foi filmado por Charles Brooker no episódio “Shut up and Dance”, da série “Black Mirror”. Trata-se de uma verdadeira master class sobre a perda de controlo das nossas vidas que nasce de um cruzamento trágico entre a tecnologia e os segredos e as fraquezas humanas. A personagem principal é um jovem (Kenny) que, trabalha e estuda; não lhe conhecemos malícia nem comportamentos reprováveis; certo dia, inadvertidamente, a irmã descarrega malware para o seu computador. Kenny não sabe mas, do “outro lado”, alguém o espia recolhendo imagens na câmara do seu portátil enquanto o jovem se masturba. Imediatamente depois, recebe um email com uma ameaça de chantagem: o filme será enviado à mãe, amigos e colegas de trabalho, a menos que Kenny cumpra uma série de instruções. Ao longo do episódio vamos conhecendo casos semelhantes, entre eles o de um indivíduo, casado e com filhos, que visita com frequência sites de pornografia infantil. Procurando puni-las pelos seus segredos e fraquezas confessados, inadvertidamente, diante de um ecrã, um hacker chantageia os vigiados, enviando-lhe instruções por mensagens e emails e incitando-os a cometer crimes, como o assalto a um banco ou o homicídio. O último desafio é lutar até à morte com outra vítima, enquanto um drone filma a cena.
A identidade do hacker nunca é conhecida e, ao que parece, esta dark force é metaforicamente a tecnologia em si mesma, transformada num enorme motor de vingança e de justiça vigilante para punir os pecadores entre nós. Mas, tal como acontece noutros episódios, a tecnologia não é a origem da ruína humana, são os próprios, as suas ações e comportamentos e, sobretudo, uma aceitação acrítica, irrefletida e irresponsável (uns dirão desinformada) das circunstâncias e das consequências da utilização da tecnologia, seja um computador, seja um telemóvel. Alguns leitores saberão que o fundador do Facebook utiliza uma mola para tapar a câmara do seu computador, como saberão também que a CIA é capaz de entrar nas nossas “smart TV’s”, “mas será mesmo assim?”, perguntam os mais incautos. Quanto a estes, o mesmo ceticismo e a mesma dúvida terão despertado aquando do relato desta notícia, mas ela é a prova de que é cada vez mais realista e menos fantasioso um tema há muito tratado pelos neoludistas: o receio de vigilância, de controlo (individual ou social) e de punição, seja pelo Estado seja por terceiros, intermediado pela tecnologia, da qual cada vez mais dependemos.
Blogger.
Escreve à terça-feira