Porventura, por feitio, talvez por educação, nunca fui muito sensível a um humor explosivo, capaz de provocar um riso fácil e contagiante.
Deve ser essa a razão por que me detenho quase sempre nos cartoons de «El Roto» que o «El País» publica quase todos os dias na página dois.
Neles, sente-se fluir um humor contido e desencantado que caustica sem piedade os aspectos mais escamoteados da vida das nossas sociedades.
Com um desenho simples e explícito, «El Roto» ilustra as frases simples que complementam a mensagem corrosiva que sempre quer transmitir.
«Tentei sair da pobreza, mas detiveram-me», exclama, por exemplo, um pai de raça negra que, desolado, leva pela mão um filho.
«As esmolas já não se usam, o que é moderno é dizer micro-mecenato», diz, com um ar didáctico e tecnocrático de gestor actual, um mendigo para outro.
«Inculcam-nos medos, para que esqueçamos os que temos» constata ao espelho – que podia ser a televisão, digo eu – um jovem abismado.
«Os líderes vivem na história, o comum dos mortais na actualidade», reflecte uma mulher numa postura de pensador à la Rodin.
Houve um, porém, que me interpelou especialmente pela sua clarividência – «As novas mentiras põem em perigo as mentiras anteriores» – diz um senhor bem-posto, simbolizando, claramente, um expoente do sistema.
O problema da verdade entrou, de facto, na ordem do dia.
Fruto das novas tecnologias mediáticas e do uso que delas é feito – ora por interesses estabelecidos, ora por grupos emergentes, ora, ainda, por simples cidadãos com vontade de intervir e de serem ouvidos – as «verdades oficiais» vão sendo abaladas e, sobretudo, vão ruindo na consciência colectiva.
Quando esse abalo atinge «verdades» que, de algum modo, veiculam axiomas ideológicos que alguns julgavam adquiridos e sobre os quais fundaram toda uma norma de vida – seja ela política, social, cultural ou económica – de imediato os media institucionais dão o sinal de alarme e os comentadores de serviço iniciam a sua função de correctores e estabilizadores do pensamento único.
Contudo, já assim não acontece com a mesma premência quando as denominadas pós-verdades actuam sobre aspectos menos relevantes para o sistema, permitindo-se então algumas divagações e, inclusive, a formação de novas crenças: refiro-me, por exemplo, às lendas de natureza pseudocientífica como aquelas que, com os resultados conhecidos, questionam a validade das vacinas, colocando-nos a todos em risco.
A verdade – e sobretudo a que diz respeito a aspectos da vida social, económica e cultural – reveste, contudo, uma importância política fundamental e, mesmo que sobre ela se devam contrariar perspectivas relativistas, haverá que reconhecer que é difícil estabelecê-la, pois permite sempre leituras concorrentes.
«Negação», um filme em exibição nos cinemas, mostra, por exemplo, como custa compatibilizar a verdade histórica – obtida com métodos próprios dessa ciência – com a verdade judicial e processual, estabelecida com recurso a regras diferentes e que visam, além disso, proteger outros valores.
Por essa razão, para que uma perspectiva mais crítica da verdade da vida social possa acontecer – permitindo uma indispensável regeneração efectiva da vida política – é necessário que os órgãos de comunicação social sejam integrados por profissionais com estatuto seguro, maior margem de independência e uma memória que só uma cultura humanística abrangente educa e desenvolve.
Só isso lhes permitirá maior objectividade e, portanto, de novo, maior credibilidade e aceitação públicas.
Escreve à quarta-feira