Nestes tempos em que foi decretado o fim da crispação e a magistratura do afecto, e em que se reclamam importantes pazes feitas entre a governação e o texto constitucional, a maioria, segundo se noticia, prepara mais uma “reforma” legislativa para a coisa do arrendamento.
Chamo-lhe coisa porque, depois de mais de um século de vinculismo arrendatício, só por piada ou indesculpável mau gosto se pode falar num mercado de arrendamento habitacional.
Outra vez, e como vem sendo costume, a maioria governante socorreu-se não de uma peregrina e inovadora nova via ou abordagem para atacar as questões do arrendamento e da falta de rendimento dos inquilinos e suas idades, mas antes lhe ocorreu – como costumadamente – proceder à revogação/alteração da legislação aprovada pelo governo anterior, criando novas e melhoradas soluções ao diploma que neste momento discute e que, afinal, pretende deixar tudo como foi antes…
Ao que parece, e à falta de melhor, propõem estas inovações que a protecção dos inquilinos, que a lei previa ser feita por subsidiação do Estado a quem necessitasse e a pedisse, passe (ou continue) antes a ser garantida, como de costume e outra vez, pelos senhorios.
Suponho que o princípio seja que quem já aguentou cento e tal anos disto aguenta mais três ou mais cinco…
Ora, só quem não consiga reconhecer nas anteriores alterações ao regime do arrendamento e às regras do alojamento local o espectacular efeito de renovação/recuperação do edificado, e por outro lado se negue a perceber o que o vinculismo centenário havia feito ao parque habitacional, pode ver nesta via uma qualquer solução minimamente razoável e sustentável.
É típico da mentalidade portuguesa defendermos o direito à propriedade privada em nossa casa (própria) mas, como inquilinos, falarmos só no direito à habitação (que, já agora, é um direito que cumpre ao Estado garantir, e não aos proprietários).
Ainda que exista uma histórica tendência para tanto, a verdade é que os dois direitos, em bom rigor, não se auto-excluem, e é por isso que os senhorios, num quadro de generalização da liberalização das rendas – que só quem era senhorio de pessoas naquelas condições específicas suportou –, ficaram sujeitos a um regime transitório que mitigava a passagem para valores de mercado dos inquilinos necessitados através da sua futura subsidiação, impondo ao senhorio ter de suportar o período transitório, e à acção social, a seu tempo, todo o restante.
Não podemos esquecer que a CRP impõe que ao Estado incumbem medidas para garantir o direito à habitação, mas também que “é garantido o direito à propriedade privada (…)“ e que “a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”.
Não se discute a justeza da necessidade de haver apoio a inquilinos carenciados, e que tal caiba, sempre que razoável e necessário, nas funções de protecção do Estado, mas também parece que não podem restar grandes dúvidas de que esse direito não tem de continuar a ser suportado pelos proprietários, como, aliás, toda a evolução legislativa (quando a deixam) confirmará. Mas o que parece que se estuda e propõe fazer é antes desequilibrar ou manter o desequilíbrio da relação arrendatícia, para o lado do costume.
Mas mais e pior: não contente, e como prova cabal da loucura instalada e da perigosa confusão sobre conceitos que deviam ser universais nas democracias ocidentais, como é o caso não despiciendo da propriedade privada, parece que o BE (pelo menos) propõe manter congelada a fruição das casas dos senhorios arrendadas a determinadas categorias de pessoas, tolhendo-lhes por mais anos a renda justa da fruição das suas propriedades, negando-lhes o rendimento normal do que (ainda) é seu, contra coisa nenhuma para a generalidade dos visados com esta acção social – isto porque, aparentemente, o Estado ainda não terá criado o tal fundo de apoio aos inquilinos –, o que não espanta.
O que é aqui verdadeiramente surpreende é que o BE queira oferecer, como novidade desta alteração, um novo subsídio só para os senhorios com baixos rendimentos, importante inovação cá do burgo e que propõe criar a primeira subsidiação – por sugestão da extrema- -esquerda – aos donos do capital especulativo. Esta, nem o Trump!
Estamos, pois, perante nova pérola deste nosso laboratório social que se materializa no estrangulamento dos pequenos e médios proprietários através da manutenção do congelamento centenário das rendas e da criação de uma nova classe de subsidiodependentes pagos pelo contribuinte. Se isto não fosse trágico, pela demência, era no mínimo surreal.
Advogado na norma8advogados
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Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico
Escreve à quinta-feira