Uma ânsia descomedida de escapar ao literário foi o que originou os constrangimentos que cercaram o aparecimento da voz de Almeida Faria. Ninguém como um jovem, alguém que na verdade não sabe ainda se existe, ou até que ponto, está tão capaz dessa violência que significa romper sem medir as consequências do seu acto. Mesmo se, há mais de meio século, não houve quem se consentisse o risco de ignorar um feroz exemplo de sangue novo, no ventre do espanto e admiração que “Rumor Branco” provocou logo entrou em gestação um poderoso ressentimento.
Os neo-realistas pressentiram o que significava uma aparição tão alheia às suas causas. Almeida Faria confessaria mais tarde que então nem os tinha lido. Não se tratava de rejeição, mas de uma ignorância que tantas vezes nos salva da desnecessidade de reagir às estratégias de decomposição de tudo o que, tendo perdido a juventude e o seu aviltante destino, pretende encerrá-la numa escola. Calculando a extensão das suas palavras, Vergílio Ferreira elogiou contidamente um ex-aluno que, ao invés de uma obra exemplar, serviu o ritmo mais natural da inquietação, e negou uma a uma todas as lições, preferindo a natureza instintiva de um esboço, de uma voz que, desconhecendo o seu alcance, se permite sentir as palavras com as suas raízes, e arrancá-las, “como se fosse partir ou dar um grito largo”.
Vergílio Ferreira não podia, como não pode quase ninguém, ver além da sua visão. Um homem depois de se julgar descoberto existe confinado dentro do destino a que se reserva. Não viu por isso que “Rumor Branco” apenas coincidia acidentalmente com a recusa que naqueles anos significou o “novo romance”. Mas o que havia de mais convincente na escrita do jovem que então não tinha sequer 20 anos era, ao invés de uma fé que se posta diante do mundo numa atitude contemplativa, uma confiança da estranheza, numa escrita que traduz esse “obscuro abalo, indizível perturbação, alarme longínquo que se vai exprimindo por um turbilhão de palavras e se há-de depois esclarecer ou não numa verdadeira ‘história’”.
Temos hoje a vantagem (mas talvez só presumida) de ter já desdobrados os passos desse percurso que então surgiu como uma ameaça ao horizonte da literatura portuguesa. Almeida Faria continuou a evitar a literatura e disse certa vez, em resposta um inquérito, que essa mesma desconfiança o guiou sempre, sendo a sua natureza de estudante dedicada à leitura dos filósofos. “O que leio tem assim pouco a ver com a escassa literatura que, meio às escondidas, geralmente a meio da noite ou de madrugada, escrevo com certa vergonha de não conseguir vir a ser o filósofo que gostaria de algum dia ter sido”.
Além do livro de estreia e da Tetralogia Lusitana – que começa a desenhar-se com o seu segundo livro, “A Paixão”, publicado em 1965, e se encerra com “Cavaleiro Andante” em 1983, ficando pelo meio “Cortes” (1978) e “Lusitânia” (1980) -, só tem mais um romance “O Conquistador”, de 1990. Na recente entrevista que deu ao “Sol”, Almeida Faria disse que tem em relação a todos os seus romances a sensação de que falhou em alcançar o que se propôs, mas foi em “O Conquistador” que esteve mais perto, foi aquele em que falhou melhor. Adiantou ainda que estava neste momento perto de concluir um outro livro, que talvez venha a publicar-se em 2018.
Depois, há um livro de viagens, “O Murmúrio do Mundo” (2012), duas incursões na dramaturgia, duas novelas, contos e ensaios. É uma obra que não se impôs como ofício, não abdicou do azar que é próprio de cada um a favor da experiência, essa obstinação que faz de certos escritores papagaios virtuosíssimos, com a sua capacidade de captar vozes, largar até à última pena em arranjos preciosos que fazem das suas obras labirintos deslumbrantes mas sem saída.
No prefácio a “Cavaleiro Andante”, Eduardo Lourenço destacou a sua capacidade de produzir “uma intensidade dramática e uma emoção rara em autor tão conscientemente hostil a todo o pathos romântico”. Muito já se escreveu também sobre o seu modo de convocar a história e os mitos nacionais, elaborando de forma poética um largo espectro de ressonâncias numa sua criação ficcional que, se não cede a uma postura filosófica, cria um quadro poderoso para uma reflexão crítica que fascina e atrai a razão intuitiva do leitor.
Com todas as suas reservas face aos modelos convencionais que a literatura vai encarnando segundo os tiques epocais, Almeida Faria reconhece que a crítica, pelo menos em Portugal, acabou de certo modo por desistir da tarefa de enfrentá-lo, deslindar a complexidade dos desafios que a sua obra coloca à identidade portuguesa. Não é verdade que haja um desprezo maior por este autor do que por outros cuja grandeza é prejudicada pela falta de massa crítica num país que, assim que enriqueceu, logo se foi esbanjar da forma imbecil em tudo aquilo que retira a uma nação a capacidade de se identificar face a si mesma e ao mundo, e decidir de modo político e social, a partir de valores culturais, sobre o seu destino.
Naquele mesmo inquérito, Almeida Faria aproveitou para desviar-se da questão que lhe fora colocada, mostrando o desagrado por, de tudo o que escreveu, raramente ter escapado ao destino comum do que se contenta em ser mera literatura. “Quanto aos meus desconhecidos leitores, raro recebo um gesto ou eco deles, e lamento. Dos críticos cá vou tendo notícias, sempre muito grato quando dizem mal: a estupidez alheia dá-me raiva e a raiva é para a minha musa um estímulo excepcional nos vários sentidos da palavra (…), durante anos consegui não publicar nada só para não ver o meu nome na imprensa, na pena de gente que não me merece nenhum respeito. Porém, quando tal gente já se preparava para me considerar morto e enterrado, voltei a publicar para chatear essa gentalha.”
Para lá do imenso escrúpulo desta escrita, usando sempre de contenção, enquanto estima a língua e a combina num apuro sedutor, Almeida Faria não radicaliza a expressão futilmente, não tenta esmagar o leitor com recurso a excessos ‘atabafantes’. Tratando o leitor como um igual, e o seu tempo como se fosse de facto um bem limitado e inestimável, combina o lirismo e a ironia, a sensualidade e a lucidez, e é, sobretudo, um dos muito raros romancistas que, entre nós, realmente parecem convictos do valor da ficção, de modo a que o mundo que reflectem seja mais do que uma simples distorção, ou “desestabilização superficial dos factos”. James Wood estabelece esta diferença num ensaio a propósito de W.G. Sebald recolhido em “A Herança Perdida” (Quetzal, 2012).
Sem querer estabelecer um paralelo com aquele autor, é importante notar como o mundo contemporâneo só entra na ficção de Almeida Faria enquanto sonho. O que parecem simples factos tornam-se elementos indecifráveis. Isto coloca-o ainda hoje no campo oposto da literatura que mais escola fez entre nós. É o caso de Lobo Antunes, que tem hoje muitos discípulos mais e menos assumidos, sendo um escritor que há décadas pouco mais tem feito senão tecer longas litanias deslumbradas consigo mesmas, obras que não alcançam esse “absoluto filtrado”. A persistente fraude de que vem escrevendo romances polifónicos revela-se um mero álibi para enquadrar delírios da linguagem, repetitivas encenações de um quotidiano reelaborado segundo um efeito de pura estesia, em que o excesso de pathos apenas serve um reflexo patético do mundo.
Já um escritor como Almeida Faria assume as suas falhas, arrisca ao adoptar a artificialidade que permite que a sua ficção construa uma realidade invisível. Um murmúrio que desequilibra o mundo e o atira para um sonho onde volta a ser possível a sua feroz recriação.