A história das ideologias não é simples. O debate entre esquerda e direita nunca o foi, assim como a luta entre ordem liberal e ordem nacional não o era. Não há uma só direita ou uma só esquerda, nem sequer um só socialismo ou um só conservadorismo.
Quando olhamos para a ordem internacional que vigora desde a ii Guerra Mundial e o crescimento económico que dela veio, duas ideologias destacaram-se. Governaram juntas ou em alternância, cimentaram a Europa e partidos a que nós, cá, chamamos arco de governação. Essa é uma expressão que aprecio.
As ideologias foram a social-democracia, que fundou o Estado social europeu e fez um continente renascer das cinzas de uma guerra, e, a seu lado, a democracia cristã.
O sucesso eleitoral e político dessas duas correntes não se devia a grandes diatribes ideológicas. Os partidos de centro-direita ou centro-esquerda não ganhavam eleições porque prometiam; ganhavam eleições porque faziam.
É evidente que essa capacidade de cumprir beneficiava de um contexto económico próspero e de uma bipolaridade, mesmo que aterradora, menos complexa que a multipolaridade contemporânea. E era também natural que os extremos, a que hoje chamamos populismos, estivessem demasiadamente vivos na memória cultural para se tornarem atrativos. Os crimes de Estaline e a brutalidade do Exército Vermelho eram indesmentíveis. O legado de Mussolini e Hitler foi a saudável gestação de anticorpos contra o estatismo autoritário.
A extrema-esquerda e a extrema-direita estavam remetidas a nichos eleitorais. Eram de mau tom e tudo valia para impedir a sua remassificação, até projetos comunitários contra a natureza dos povos, concebidos por uma elite que se julgava imortal.
Mas quando olhamos para o centro desse tempo, para as referidas social- -democracia e democracia cristã, entendemos que o seu maior ativo era responderem a problemas de uma maioria. O quotidiano da sociedade era para ser melhorado e resolvido onde necessário. O interesse nacional e o bem comum ainda andavam de mão dada.
As ideologias extremistas, por outro lado, pecavam por utopia. Sonhavam demasiado. Eram projetos de sociedade que não tinham – e não têm – nada a ver com a sociedade em si. Os revolucionários queriam um futuro que invertesse o presente. Os reacionários queriam um presente invertido pelo passado. Não havia realidade ou dia-a-dia em ideologias que não passavam disso mesmo.
O problema de hoje, que trouxe a falência da social-democracia, a crise dos partidos de centro e a morte dos ancestrais arcos de governação, é que, além de esse centro se ter convertido em establishment, deixou também que os extremos, à direita e à esquerda, tomassem o seu lugar no monopólio da realidade.
O centro deixou as preocupações do votante mediano, das classes médias, ao abandono. Ficaram órfãs. Os operários já não votam no centro-esquerda. Os pequenos empresários já não votam no centro-direita. Votam em que diz que vai resolver os seus problemas.
Os franceses têm medo de viver numa França sem franceses e Marine Le Pen diz que resolve. Os americanos têm medo de viver numa América sem emprego e Donald Trump diz que resolve. Os alemães não querem viver numa Alemanha onde as mulheres tenham medo de sair à rua devido a migrantes. A Alternativa diz que resolve.
Os partidos de centro perderam eleitorado porque deixaram de responder às necessidades do eleitorado. As preocupações de quem não compreende ou não foi tão motivado pela globalização não são ouvidas por quem insiste na mesma ordem liberal em vez de a reformar. E sim, a austeridade em pacotes imediatistas também tem a sua culpa.
A sra. Le Pen pode ganhar em França porque a sra. Le Pen tomou o quotidiano da França, tomou o tal monopólio da realidade da maioria.
Hoje, o sonho passou para o centro. Um sonho em que todos os “refugiados” são uns gajos porreiros, a globalização ajuda “toda a gente” e a União Europeia consegue uma solução para qualquer coisa.
Os populistas viram apenas que, afinal, o centro é que se havia tornado a utopia.