A recente destituição da procuradora--geral interina dos EUA pelo presidente Trump, por ela ter determinado a um conjunto de procuradores que analisassem a legalidade constitucional da lei sobre refugiados – e a impugnassem, se necessário – que aquele acabara de promulgar, parece ter escandalizado algumas boas almas que costumam perorar sobre todos os assuntos da atualidade nos nossos media.
Acostumadas a falar acriticamente sobre o irrepreensível sistema de checks and balances do sistema político norte-americano, que não se cansam de incensar, avançaram, desta vez, com um coro de críticas capazes de fazer despertar o mais desatento e imperturbável dos cidadãos.
E, no entanto, o presidente Trump não fez nada que não estivesse ao alcance dos seus poderes constitucionais e que, na lógica do sistema, não pudesse ter feito.
Incapazes de desenvolver um pensamento crítico sobre o sistema americano, que sempre usaram como argumento de autoridade contra os sistemas continentais europeus, e especialmente o português, parecem perceber, por fim, as limitações e redundâncias que tal sistema contém em si mesmo.
O que mais impressiona é, todavia, a cegueira acrítica com que muitas delas continuam a avaliar algumas das soluções constitucionais portuguesas, designadamente as que têm permitido, comprovadamente, à justiça portuguesa – pesem os defeitos de eficiência que continua a manifestar – atuar à margem das perspetivas políticas que, circunstancialmente, são prosseguidas pelos detentores do poder.
Refiro-me, neste caso, à consagração da autonomia do Ministério Público (MP) na Constituição da República portuguesa, que tanta impressão causa e críticas (oportunas e oportunistas) tem merecido a um conjunto de comentadores da realidade política e institucional do nosso país.
O recente episódio norte-americano permite, contudo, compreender melhor como a independência da justiça, desacompanhada da autonomia do MP, pouco valor tem nos nossos dias, em que muitas das matérias que os tribunais devem analisar dependem de um impulso processual que a sociedade civil, por ela própria, não está à partida capacitada para desenvolver.
A capacidade que o MP tem de suscitar, com independência, a ilegalidade de leis e de decisões político-administrativas lesivas dos valores constitucionais e dos interesses de grupos significativos de cidadãos menos aptos, por si, a intervirem na esfera pública e, especialmente, no mundo complexo do poder judicial, revela-se assim determinante para que os tribunais possam apreciar todo um conjunto de situações que, de outro modo, não seriam chamados a resolver.
Tal capacidade, que deve proceder de um conjunto de atribuições estatutárias e legais e de competências processuais, não deve, por isso, ser reduzida.
Pelo contrário, importa aprofundá-la, apetrechando o MP – com especialização de magistrados e meios periciais adequados – para a poder desenvolver com a acuidade e eficiência que a justificam.
Hoje, fruto de uma inspiração neoliberal que reduz o alcance do serviço público da justiça aos interesses da economia, há uma tendência para ir diminuindo nas jurisdições administrativa, constitucional, financeira, civil, familiar e laboral – áreas sempre pouco acarinhadas, mesmo no seio do MP – a intervenção desta magistratura.
Com isso se condiciona o acesso à justiça não só dos que têm menos possibilidades económicas como, sobretudo, dos que têm menos competências culturais e, portanto, menor possibilidade de exercício da cidadania.
Jurista
Escreve à terça-feira