Mas qual visita de Estado?


É triste que Portugal fique sem Soares, que nos salvou do comunismo, na mesma semana em que Marcelo Rebelo de Sousa felicita um ditador comunista pelo aniversário da sua revolução


Faz um ano que esta coluna de opinião, de nome Câmara dos Comuns, é publicada no i, o que quer ao mesmo tempo dizer que o ofício de cronista como meu também celebra aniversário. Na semana passada não o referi, caro leitor, pois a página vinha propositadamente em branco. Aos que esperavam mais prosa, o meu perdão.

Os sete dias que separam a última edição de fim de semana deste jornal daquela que o leitor tem em mãos foram apressados. Faleceu Mário Soares, António Costa permaneceu na Índia, Augusto Santos Silva, seu ministro, regressou da Índia, velou- -se Mário Soares e despedimo-nos de Mário Soares.

Em reação a isto escrevi um artigo para o semanário “SOL” que defendia que as cerimónias fúnebres de Soares, sendo o primeiro funeral de Estado desde o 25 de Abril, mereciam a presença de António Costa.

É para mim inconcebível que o secretário-geral do Partido Socialista não esteja na despedida do fundador do PS. Perante o modo como as instituições já se iam preparando para o falecimento do antigo Presidente, é lamentável que o governo não tenha adiado uma visita de Estado tão longínqua. Nenhum negócio, nenhum investimento, nenhum simbolismo seria maior ou comparável com o legado de Mário Soares.

Os que argumentam com o eventual custo financeiro da viagem de regresso de António Costa, lembrem-se que Santos Silva voltou de avião e de pronto. Os que desculpam Costa com qualquer visita de Estado que Soares tenha perpetuado enquanto Presidente recordem-se que, por muito que São Bento e Belém namorem, o dr. Costa ainda é só primeiro-ministro, não chefe de Estado.

Aliás, toda a transformação da “viagem oficial à Índia” numa “visita de Estado à Índia” foi de uma conveniência ligeiramente inconveniente. Não podemos ir de fãs de uma Presidência sem protocolo a grandes institucionalistas das visitas de Estado apenas porque convém.

Todas estas razões não passam de politiquice partidária que escapa ao que realmente interessa: o maior responsável pela democratização da Revolução de Abril não teve o primeiro-ministro de Portugal nas suas cerimónias fúnebres. Isto é grave. A iii República existe como existe por causa de Mário Soares, o Partido Socialista existe como existe por causa de Mário Soares. Se há exceção que merecia interromper viagens, esta era uma delas.

E insisto: estamos a falar do maior responsável pela transição democrática contra os totalitarismos do PCP e pela maior maioria absoluta da história das nossas eleições livres.

Mesmo que de maiorias Costa entenda pouco e que de defender a democracia de comunistas entenda ainda menos, a sua ausência é um imperdoável desplante.

Do percurso de Soares, aprecio particularmente o congresso do PS na Aula Magna, em finais de 75.

A tensão entre a fação miliciana e a fação civil do PS era evidente – com armas dentro da reunião –, mas é Manuel Alegre quem discursa e consegue sossegar as hostes. Haviam até pedido a identificação de Mário Soares à entrada. Este prossegue secretário-geral e o PS prossegue democrático.

Na altura, os soaristas temiam que uma viragem à extrema-esquerda causasse uma reação da extrema-direita. Matéria a rever, portanto.

Há também um livro muito interessante do Filipe Santos Costa, jornalista, que testemunha a última campanha presidencial de Mário Soares. É curioso ver como temas que pareciam estranhos na altura (o diálogo entre religiões, o acolhimento de refugiados ou a sustentabilidade do Estado social europeu) são hoje tão atuais.

Se sou capaz de concordar que Soares poderia ter mantido maior resguardo na última fase da sua vida política, vejo a importância que uma campanha que poucos perceberam, afinal, tinha.

O resto, da Fonte Luminosa à adesão europeia, da aposta com Kissinger aos problemas da descolonização, tem sido bastante falado e não vou repetir.

É só triste que Portugal fique sem Soares, que nos salvou do comunismo, na mesma semana em que Marcelo Rebelo de Sousa envia os parabéns a um ditador pelo aniversário da revolução cubana.

Eu, que nunca fui socialista, sempre tive amigos socialistas. Deixo-lhes um abraço. Àqueles que não precisaram que Mário Soares partisse para se recordarem do que fez.