Soares é fixo. Agora é mesmo a nossa vez…


Haverá sempre ameaças ao legado de Mário Soares, em Portugal, na Europa e no mundo. A questão está em saber se, sendo a nossa vez, estaremos à altura 


É sempre assim quando a morte nos leva as referências. Num ápice faz-se a pedagogia que não se fez em vida, valoriza--se o que não teve reiterada importância para ser explicado às novas gerações e os espaços mediáticos são preenchidos por penosas presenças de amizades de circunstância e profusa verve para sustentar a emissão no ar, mesmo que a toque de disparate.

Soares foi fixe. Soares é fixo. Por mais deambulantes ou verrinosos que possam ser os exercícios de liberdade de expressão democrática, creditada à ação decisiva de Mário Soares, são improcedentes as tentativas de beliscar o seu património político de combate contra a ditadura de Salazar, de determinação em implantar a liberdade e a democracia, de intransigência na defesa do pluralismo e da liberdade de expressão e da visionária adesão ao projeto da construção europeia como rumo de consolidação democrática e de desenvolvimento.

O seu legado é fixo, não se move, é firme, como na química, é um corpo que não se pode volatilizar, mas precisa de ser vivificado, explicado e lançado em sementeira para as novas gerações. O seu exemplo de vida política é uma inspiração de pensamento livre, de luta contra a corrente e de tolerância com a diferença, algo que, para os quadros mentais de muitos dos que o dizem venerar e para a forma como exercem o poder, são ousadias cívicas ou políticas inaceitáveis.

Quantas vezes não ouvimos “é o Soares” como sinónimo de espírito livre?

O compromisso com o legado é incompatível com a dificuldade em respeitar a diferença ou a crítica. O compromisso com os pilares do seu património é incompatível com a falta de genuinidade, com as narrativas estapafúrdias ou com a desistência de travar os combates cívicos e políticos por meras conveniências pessoais ou de conjuntura. Que teria sido se Soares não tivesse participado no esforço de desgaste da ditadura, porque havia um lugar garantido no sistema, ou se o comodismo das circunstâncias prevalecesse sobre a determinação em travar um combate político pela Presidência da República com tão exíguas intenções de voto à partida? Ou se, mesmo antes da pronúncia do povo, em voto livre e democrático, já se congeminassem reconfigurações da vontade popular mais ou menos indiferentes aos resultados eleitorais? Quão profundas e inspiradoras serão sempre a frase e a atitude de “só é derrotado quem desiste de lutar”.

Mário Soares foi muito mais que as circunstâncias, impulso de resiliência cívica e de liberdade que nos deixa um legado de amor à democracia e a Portugal. Soares foi tudo isso e muito mais, mas agora é mesmo a nossa vez. Continuar a dizer o que pensamos e a respeitar a diferença. Continuar a fazer o que pensamos e a respeitar a esfera de ação dos outros. Continuar a lutar, por nós e por Portugal.

Quanto ao resto. Que venham muitas oportunidades e negócios das Índias da visita oficial do primeiro-ministro, porque visita de Estado tem a presença de Portugal nas suas diversas expressões de pluralismo, e não apenas do governo. Que venham muitos benefícios para Portugal à conta das proximidades de berço e do Brexit para compensar a ausência do secretário-geral do PS da homenagem final ao fundador do partido, depois de também ter faltado à despedida de António de Almeida Santos.

Que haja tolerância quando, ecoada a notícia da morte, alguém no Bom Sucesso, em Alverca do Ribatejo, resolveu lançar foguetes, provavelmente os mesmos que, após 24 de abril de 1974, elaboraram listas negras para a caça às bruxas em relação a quem pensava diferente do Politburo.

Ou que não venham muitos à rua, que venham menos ou que não venham ne-nhuns, porque essa discricionariedade de participação também é democrática e resulta da liberdade conquistada. Noutros tempos, alguém determinava e estavam presentes sem margem para o arbítrio da vontade própria; noutras longitudes, alguém ordenava e o incumprimento gerava prisão ou violência; mas agora, como há mais de quatro décadas, não. Graças a Soares e a outros democratas, podem vomitar insultos nas redes sociais, destilar ódios ou simplesmente não fazer nada. 

Que venham muitos e muitos, porque na diversidade, com tolerância e com sentido de participação democrática, só com a soma dos contributos cívicos e dos políticos podemos mitigar a perda das referências, a desregulação e as incertezas que povoam o horizonte.

Nem sempre concordei com as circunstâncias ou os impulsos de Mário Soares, em especial nos últimos anos de intervenção política e partidária, mas sempre mantive sintonias com o essencial do seu legado. 

Haverá sempre ameaças ao legado de Mário Soares, em Portugal, na Europa e no mundo. A questão está em saber se, sendo a nossa vez, estaremos à altura ou, por circunstâncias pessoais de sobrevivência política ou de apego ao poder, alguns desistem de lutar.

Por nós, à sua imagem, manteremos a sintonia com o apego ao humanismo, à procura da sabedoria e à liberdade de pensar e de agir em conformidade.

Tolhidos pela perda de um dos pilares da fundação da democracia e do pluralismo em Portugal e de um espírito livre, um abraço solidário ao João Soares e à Isabel Soares. É no passado que buscamos inspiração para o presente e para construir o futuro. Agora é mesmo a nossa vez.

 

Militante do Partido Socialista

Escreve à quarta-feira


Soares é fixo. Agora é mesmo a nossa vez…


Haverá sempre ameaças ao legado de Mário Soares, em Portugal, na Europa e no mundo. A questão está em saber se, sendo a nossa vez, estaremos à altura 


É sempre assim quando a morte nos leva as referências. Num ápice faz-se a pedagogia que não se fez em vida, valoriza--se o que não teve reiterada importância para ser explicado às novas gerações e os espaços mediáticos são preenchidos por penosas presenças de amizades de circunstância e profusa verve para sustentar a emissão no ar, mesmo que a toque de disparate.

Soares foi fixe. Soares é fixo. Por mais deambulantes ou verrinosos que possam ser os exercícios de liberdade de expressão democrática, creditada à ação decisiva de Mário Soares, são improcedentes as tentativas de beliscar o seu património político de combate contra a ditadura de Salazar, de determinação em implantar a liberdade e a democracia, de intransigência na defesa do pluralismo e da liberdade de expressão e da visionária adesão ao projeto da construção europeia como rumo de consolidação democrática e de desenvolvimento.

O seu legado é fixo, não se move, é firme, como na química, é um corpo que não se pode volatilizar, mas precisa de ser vivificado, explicado e lançado em sementeira para as novas gerações. O seu exemplo de vida política é uma inspiração de pensamento livre, de luta contra a corrente e de tolerância com a diferença, algo que, para os quadros mentais de muitos dos que o dizem venerar e para a forma como exercem o poder, são ousadias cívicas ou políticas inaceitáveis.

Quantas vezes não ouvimos “é o Soares” como sinónimo de espírito livre?

O compromisso com o legado é incompatível com a dificuldade em respeitar a diferença ou a crítica. O compromisso com os pilares do seu património é incompatível com a falta de genuinidade, com as narrativas estapafúrdias ou com a desistência de travar os combates cívicos e políticos por meras conveniências pessoais ou de conjuntura. Que teria sido se Soares não tivesse participado no esforço de desgaste da ditadura, porque havia um lugar garantido no sistema, ou se o comodismo das circunstâncias prevalecesse sobre a determinação em travar um combate político pela Presidência da República com tão exíguas intenções de voto à partida? Ou se, mesmo antes da pronúncia do povo, em voto livre e democrático, já se congeminassem reconfigurações da vontade popular mais ou menos indiferentes aos resultados eleitorais? Quão profundas e inspiradoras serão sempre a frase e a atitude de “só é derrotado quem desiste de lutar”.

Mário Soares foi muito mais que as circunstâncias, impulso de resiliência cívica e de liberdade que nos deixa um legado de amor à democracia e a Portugal. Soares foi tudo isso e muito mais, mas agora é mesmo a nossa vez. Continuar a dizer o que pensamos e a respeitar a diferença. Continuar a fazer o que pensamos e a respeitar a esfera de ação dos outros. Continuar a lutar, por nós e por Portugal.

Quanto ao resto. Que venham muitas oportunidades e negócios das Índias da visita oficial do primeiro-ministro, porque visita de Estado tem a presença de Portugal nas suas diversas expressões de pluralismo, e não apenas do governo. Que venham muitos benefícios para Portugal à conta das proximidades de berço e do Brexit para compensar a ausência do secretário-geral do PS da homenagem final ao fundador do partido, depois de também ter faltado à despedida de António de Almeida Santos.

Que haja tolerância quando, ecoada a notícia da morte, alguém no Bom Sucesso, em Alverca do Ribatejo, resolveu lançar foguetes, provavelmente os mesmos que, após 24 de abril de 1974, elaboraram listas negras para a caça às bruxas em relação a quem pensava diferente do Politburo.

Ou que não venham muitos à rua, que venham menos ou que não venham ne-nhuns, porque essa discricionariedade de participação também é democrática e resulta da liberdade conquistada. Noutros tempos, alguém determinava e estavam presentes sem margem para o arbítrio da vontade própria; noutras longitudes, alguém ordenava e o incumprimento gerava prisão ou violência; mas agora, como há mais de quatro décadas, não. Graças a Soares e a outros democratas, podem vomitar insultos nas redes sociais, destilar ódios ou simplesmente não fazer nada. 

Que venham muitos e muitos, porque na diversidade, com tolerância e com sentido de participação democrática, só com a soma dos contributos cívicos e dos políticos podemos mitigar a perda das referências, a desregulação e as incertezas que povoam o horizonte.

Nem sempre concordei com as circunstâncias ou os impulsos de Mário Soares, em especial nos últimos anos de intervenção política e partidária, mas sempre mantive sintonias com o essencial do seu legado. 

Haverá sempre ameaças ao legado de Mário Soares, em Portugal, na Europa e no mundo. A questão está em saber se, sendo a nossa vez, estaremos à altura ou, por circunstâncias pessoais de sobrevivência política ou de apego ao poder, alguns desistem de lutar.

Por nós, à sua imagem, manteremos a sintonia com o apego ao humanismo, à procura da sabedoria e à liberdade de pensar e de agir em conformidade.

Tolhidos pela perda de um dos pilares da fundação da democracia e do pluralismo em Portugal e de um espírito livre, um abraço solidário ao João Soares e à Isabel Soares. É no passado que buscamos inspiração para o presente e para construir o futuro. Agora é mesmo a nossa vez.

 

Militante do Partido Socialista

Escreve à quarta-feira