Mário Soares era o único português que, ao longo de uma vida intensa e corajosa antes e depois da ditadura, foi contemporâneo, conheceu ou privou com os grandes políticos que reconstruíram a Europa no pós-guerra e com os seus sucessores imediatos, entre os quais se encontravam outros estadistas relevantes.
Sem Soares, Portugal não teria conseguido tornar-se um país politicamente europeu, mantendo as suas especificidades de relações com o mundo e que estão patentes na CPLP. Portugal não tem verdadeiramente ideia do que lhe deve. Haverá que saber honrá-lo e apontá-lo como exemplo de coragem para as gerações futuras. Falar dele e estudá-lo será a forma mais digna de lembrar o seu combate pela liberdade, a sua ação como primeiro-ministro, muitas vezes menos considerada, mas porventura a mais relevante e, claro, a sua magistral e controversa Presidência.
Há que nos curvarmos perante os que, como Mário Soares, fizeram História de forma positiva. Esperemos que o país decida um dia dar-lhe o Panteão Nacional como última morada, porque Soares é património de todos nós. Era, aliás, um português genuíno, mas sem a dose de fatalismo do fado, que não parecia apreciar (tal como o futebol).
Nas críticas mais violentas que lhe fazem (muitas delas expressas de forma anónima nas redes sociais) está a descolonização. Percebe-se, mas não há razão. Porque uma coisa são os problemas e os dramas de cada um e outra é o curso da História, que ia no sentido do que aconteceu e que, mesmo assim, permitiu o regresso e integração de meio milhão ou mais de pessoas. A descolonização foi a consequência de um colonialismo que o salazarismo, os militares e certos colonos não souberam reformar no início dos anos 60 e transformar em independências estáveis e multirraciais.
Fui diretor de informação da RDP quando Soares era primeiro-ministro, e depois presidente da Lusa, já com ele chefe de Estado. A relação nem sempre foi fácil, mas nunca retaliou procurando afastar–me, como outros fizeram. Nas duras entrevistas em que participei com outros jornalistas, nos tempos em que não eram para memória futura, reagiu às vezes com veemência, mas sem guardar ressentimentos. Quando, cansado de não estar ativamente no jornalismo, aceitei a direção do i, conversámos e almoçámos várias vezes. Soares mostrava gostar do jornal, da equipa e da irreverência que tinha e que já voltou a ter, admirando particularmente, e com razão, a Ana Sá Lopes. Quando saí da direção voltou a convidar-me duas vezes, na companhia de Vítor Ramalho. Deu-me ânimo e uma leitura política para o que me tinha sucedido, incitando-me a continuar a escrever o que penso sem me preocupar com as consequências. E é isso que tento fazer. Até porque também me lembro do meu pai, que a espaços conviveu com Soares e deu igualmente o seu contributo para termos um país livre e democrático, passando duas vezes pelo Aljube, por um asilo de meses na embaixada da Venezuela e por um período de exílio.
Com Mário Soares partiu a principal figura política de Portugal dos últimos 70 anos. Há poucos sobreviventes da geração que construiu os valores democráticos, depois dos anos da luta pela democracia. Soares vai fazer falta, muita falta, a Portugal, pelo exemplo, determinação, frontalidade e empenho que punha em tudo, mesmo quando não tinha razão. Mas também aí sabia normalmente corrigir as atitudes mais bruscas que por vezes tinha.
2) Amanhã começa em Lisboa o quarto congresso dos jornalistas, presidido por Maria Flor Pedroso, um exemplo de excelência, rigor e categoria profissional e pessoal. O jornalismo foi das profissões que mais mudaram desde o início dos anos 90, com o advento das novas tecnologias. Foi também das que mais sofreram quando surgiram as consequentes redes sociais. Vai sobrevivendo de forma cada mais difícil, independentemente do suporte em que é praticado. Mas uma coisa é certa: sem o jornalismo, sem os jornalistas, sem as suas notícias, as suas reportagens e, mais pontualmente, sem as suas opiniões, o mundo seria ainda mais sinistro e tenebroso do que é hoje e a fragilizada democracia em que vivemos já não existiria. A sobrevivência do jornalismo é essencial para a livre escolha, para o conhecimento e para a correção das injustiças. É preciso é praticá-lo com honestidade, o que não quer dizer que ele se dispa de pontos de vista. O jornalismo não tem de ser neutro, porque neutralidade é coisa que não existe. Tem é de ser sério. E nessa seriedade têm de estar comprometidos os jornalistas e todos os que trabalham no meio, mas também os donos dos media e os múltiplos órgãos de controlo e regulação que existem. É verdade que o jornalismo português já esteve melhor. Mas também o é que está melhor do que alguns desejariam, porque ainda resiste, apesar de certas opções erráticas e de se exercer agora num mundo altamente complexo em que a mudança constante não permite estabilizar estratégias. A circunstância de ainda existir bom jornalismo é um valor essencial e, em certa medida, surpreendente. Possa o congresso ajudar a melhorar um pouco a problemática situação.