O dr. Costa é um político genial. Rompeu com a tradição do Partido Socialista, retirando a liderança a Seguro. Prometeu não ganhar por “poucochinho” e acabou a perder por bastante. Depois rompeu com a tradição democrática portuguesa, retirando o poder a Passos Coelho. Prometeu “virar a página da austeridade” e acabou por reforçar essa austeridade. Tudo isto com um sorriso nos lábios e a passar entre os pingos da chuva.
Vemo-lo agora defender os impostos indiretos como uma escolha política e algo “mais justo”. Não é verdade. Não são nem mais justos nem uma opção política. Depois do “enorme aumento de impostos” de Vítor Gaspar, já não havia lugar para mais tributação direta. Era sufocar o contribuinte e o tecido empresarial de forma contraproducente. Este governo sabia-o e é por isso que a sua estratégia fiscal trouxe impostos indiretos.
O resultado é que não temos uma austeridade alternativa – feita de maneira diferente – ou uma redução da austeridade do governo anterior. Temos, sim, um aumento da austeridade via cativações e via impostos indiretos por cima da tributação direta, que se manteve. E se “virar a página da austeridade” era a redução do IVA da restauração ou uma eventual redução da sobretaxa, deixem-me rir.
O PS, como partido de centro-esquerda, intitula-se progressista. Ter um Orçamento sustentado em impostos regressivos é um paradoxo ideológico quase cómico.
Aumentar as taxas sobre os refrigerantes e sobre o combustível é regressivo, na medida em que não tem em conta a pobreza ou a riqueza de quem se taxa.
Proporcionalmente, uma coca-cola ou um depósito de gasolina saem bem mais baratos a quem ganha dez mil euros por mês do que a quem recebe o ordenado mínimo. Nesse sentido, os impostos indiretos não têm em conta as diferenças entre os rendimentos de quem taxam, logo não possuem qualquer noção de justiça social. Isso, para quem fez campanha a queixar-se da inconsciência social do governo anterior, já não é só um paradoxo. É uma monumental hipocrisia.
Perguntar como é que o conseguem fazer de cabeça erguida, além do descaramento que convém a quem exerce atividade política, é importante.
Houve um grande erro de análise – partilhado por esta coluna – ao avaliar a ascensão de António Costa ao poder.
Devido às afinidades do PS com o projeto e o governo do Syriza e o consequente caso amoroso com o Bloco de Esquerda, escreveram-se muitas comparações entre António Costa e Alexis Tsipras.
Ora isso, mea culpa, não se comprovou. Costa sobrevive dia após dia porque tem duas coisas que Tsipras não teve: o aparelho de um partido com quatro décadas de estrutura e ótimas relações com o outro aparelho que conta: Bruxelas.
Não falo apenas da mão mole de Jean–Claude Juncker ou do partidarismo de Moscovici nesta Comissão Europeia, que conseguiu a proeza de me provocar saudades de Durão Barroso. Falo também da pouco mencionada relação de Wolfgang Schäuble – outrora intitulado pela bancada socialista como “o falcão de Berlim” – com António Costa.
O ministro das Finanças alemão é conhecido pela sua posição ortodoxa no que toca à política financeira da Zona Euro. Não deixa de ser curioso que o Eurogrupo que arrastou Tsipras pela lama seja o mesmo Eurogrupo que tolera o projeto igualmente populista de António Costa. O facto de Schäuble ser amigo de longa data do nosso primeiro-ministro é de lembrar.
A esse jogo de cintura com as instituições europeias, Costa acrescenta uma estratégia de comunicação eficiente. Defende as suas obrigações como escolhas e legitima essas escolhas com moralidade. O fim dos contratos de associação vinha pagar os manuais gratuitos, o novo imposto do património vem financiar a Segurança Social. Cada pedaço de austeridade tem uma justificação boazinha. Ilusória mas boazinha. A defesa dos impostos indiretos corre pelo mesmo caminho.
É assim que um país que não se mobilizou para uma austeridade sob resgate se mobilizou para uma austeridade por escolha política. Descaramento e teatro. Pena o palco ser o nosso país.