A propósito do início de mais uma temporada futebolística e motivado por uma conversa com os pais de um recém-nascido, surgiu a ideia de abordar este assunto: inscrição de bebés em clubes de futebol pelos pais ou pelos avós e tios, sem a anuência dos pais.
Os clubes de futebol são (sempre foram) grupos de pertença com muita força e uma irracionalidade que desafia qualquer lógica ou tentativa de explicação do fenómeno – basta ver como o jogador A, que era um dos “nossos”, fantástico e amado, passa a ser um “traidor”, ignóbil e odiado no momento em que decide vestir as cores do adversário.
Embora estes fenómenos tenham flutuações, vive-se agora uma fase “em alta”, talvez porque restem poucos sinais aglutinadores de um povo – pertencer ou ser adepto de um determinado clube gera uma teia de cumplicidade e de irmandade com os do mesmo clube e, quase que diria, ódio relativamente aos rivais. Muita gente tem como objetivo prioritário para o seu clube ficar à frente do outro clube, mais do que ganhar (e muito menos assistir a um bom espetáculo de futebol), desejando que, independentemente das “nossas” vitórias, existam muitas e pesadas derrotas para “os outros”. Nos jogos que não têm a ver com qualquer campeonato comum torce-se pelos estrangeiros ou por quaisquer outros, desde que seja contra o nosso rival – assumo isso, para os leitores não pensarem que sou um santo, e isto apesar de ter filhos de clubes diferentes! Coitado do barão de Coubertin quando, tão ingenuamente, dizia que o principal era participar e não vencer. Talvez devesse ter dito que o principal era vencer mas, porventura nos dias de hoje, que “o principal é que os outros clubes percam, não que o meu clube ganhe” – o interessantíssimo (e assustador) fenómeno sociológico e antropológico que são as claques de futebol (e todas as suas liturgias, slogans, hinos, gritos de guerra e modos de atuar) é um exemplo que valeria a pena ser estudado profundamente, para lá das limitações que deveriam ser impostas aos seus frequentes atos violentos e intimidatórios.
Assim, e tendo em conta que o futebol divide amigos e famílias, afasta as pessoas, gera discussões e atiça raivas, inscrever uma criança num clube de futebol sem os pais saberem ou contra a sua vontade, muito especialmente quando não é o clube dos pais, é, quanto a mim, uma manobra absolutamente suja e indecente. É provocar uma divisão e criar conflitos graves entre pais e filhos. Para gáudio dos avós e dos tios, acredito, que são dessa equipa, mas não deixa de ser uma manobra manhosa. Os meninos, esses ficam divididos entre a fidelidade aos tios e avós (e ao peso de ser “sócio” e de já lhe terem oferecido um equipamento do clube X) e a ligação aos pais, que são do clube Y.
Defendo que as crianças possam ter um clube (mas o clube que querem, sem pressões, mesmo que não seja o nosso) e que sejam adeptos convictamente, nas derrotas e nas vitórias, nos bons e nos maus momentos, com uma dose razoável de subjetividade na apreciação dos factos e de irracionalidade na discussão, mas não perdendo nunca o respeito pelos outros e por si próprias e sabendo “engolir” a realidade quando, por exemplo, as imagens televisivas mostram à saciedade que os factos não foram exatamente aquilo que desejávamos – deturpar a verdade é, no fim de contas, alinhar em mentiras.
É saudável ter um clube, mas não esquecer a liberdade que nos faz tolerar os outros e precisar deles, mesmo com uma gama de opções diametralmente oposta. Todavia, pressionar até ao limite antes de as crianças saberem sequer falar, quando isso é contra a vontade dos pais e joga contra aquilo em que estes acreditam (sim, para todos os efeitos, o futebol é uma religião, uma paixão, uma coisa que não se explica…), não me parece correto, nem entendo como é que os clubes aceitam inscrições de pessoas menores sem o consentimento informado de ambos os pais. As pessoas mudam de religião, de partido político, de cônjuge, de amante e de vida. Mudam de nome e de sexo. Mudam de profissão. Mas não mudam de clube, pelo menos depois dos dez anos de idade. A inscrição num clube deveria sempre sem feita por maiores de idade ou, no caso de menores, com o consentimento escrito e informado de ambos os pais ou tutores. É pena que o legislador nunca tenha pensado nisso. Mas podem estar certos de que os litígios e os conflitos provocados pelo futebol são muito maiores do que os de qualquer outra área, mesmo as filosóficas, religiosas e dogmáticas.
Creio que valerá a pena refletir um pouco sobre este assunto, num país que tem mais de quatro décadas de democracia e ainda tantas coisas para resolver…
P.S. A propósito do artigo da semana passada sobre as vantagens de ter um animal de companhia, designadamente um cão, e os cuidados a ter antes de o arranjar, o espaço não deu para falar dos donos dos cães que são porcalhões – eles, os donos, não os canídeos.
Infelizmente, quando passeamos pelas ruas das nossas cidades e vilas, somos confrontados com constantes armadilhas que são os cocós de cães espalhados pelo passeio. Se em termos de sujidade e ecológicos não há sequer questão, em termos de saúde, como é?
Um estudo feito no Reino Unido estimou em cerca de 250 mil toneladas o cocó que os cães fazem por ano. Em Portugal temos seis vezes menos habitantes mas, como temos proporcionalmente mais cães, se calhar poderemos admitir um valor de um terço. Fiquem, portanto, com os números redondos: 80 mil toneladas de cocó de cão em cada ano que passa, ou seja, nove por hora ou 150 kg por minuto. O cocó de cão não só é nojento e malcheiroso – isso só já bastaria para os donos dos cães (eles, sim, são os verdadeiros “porcalhões”) terem mais cuidado – como pode também contaminar–nos com diversos parasitas que, nos infantários, escolas e lares, passam de pessoa para pessoa, dos sapatos e pés para as mãos, daí para a boca e para as fezes das pessoas, num ciclo muito difícil de interromper. Em certas cidades há casas de banho na rua para cães. Mas mesmo sem estes requintes, não custava nada aos donos dos cães levarem uns sacos de plástico para apanhar o cocó dos seus animais. Compram-se nas lojas “baratas” por um euro e meio, com um dispositivo preso à trela. Há papeleiras e caixotes por todo o lado.
Para quando uma maior censura social, pelo menos quando a lei (que existe) não é ainda aplicada? Não são os cães que são porcalhões – são os donos!