Para título tomo as palavras de uma canção da “Ópera do Malandro”, e para tema escolho a relação entre governantes e governados. Governantes tem aqui o sentido amplo de todos quantos exercem poder, mas inspiro-me no exemplo da relação entre os portugueses e os seus políticos e em acontecimentos deste verão. A canção é “Geni e o Zepelim”, um dos melhores momentos do musical de Chico Buarque, que conta a história de um travesti hostilizado na cidade a quem atiravam pedras e bosta, a maldita Geni. Certo dia chega à cidade um Zepelim que se prepara para a destruir. Porém, o seu comandante propõe aos habitantes poupá-los em troca de uma noite com Geni. Ela não quer, mas a cidade, atemorizada, roga-lhe que aceda, bajula-a, rapidamente a converte de maldita em bendita, num interesseiro passe de mágica. O prefeito de joelhos, o bispo de olhos vermelhos, o banqueiro com um milhão, todos lhe pedem que os salve e esquecem que, pouco antes, ela era boa de cuspir e feita para apanhar.
Geni acaba por concordar e o comandante, satisfeito, cumpre a promessa e parte no poderoso Zepelim. E depois? Passado o aperto, afastado o perigo, a magia breve desfaz-se: Geni e a cidade são o que nunca deixaram de ser e ouve-se o repetido refrão “joga pedra na Geni”.
Dirão os leitores: ora, aqui está uma possível metáfora do modo como os governantes, muitas vezes, desprezam os que governam e só os bajulam, acarinham e bendizem quando deles precisam para alguma coisa, por exemplo, para serem eleitos. Não serei eu a desdizer esses leitores, não direi que não têm razão e que a metáfora não seria bem aplicada a vários exemplos de relações governantes-governados. Contudo, não foi por isso que neste verão português me lembrei da canção. Foi pela razão inversa; ou melhor, foi a propósito da relação no sentido inverso, aquele sentido que vai, não dos governantes para os governados, mas destes para aqueles. Parece-vos disparate, exagero, metáfora forçada? Talvez, ou talvez não.
Pensem no modo como muitos governados encaram os governantes, por exemplo, pensem na relação entre os portugueses e os políticos. Não os hostilizam, não dizem deles todo o mal, em surdina ou mesmo a voz inteira (quando para isso têm ocasião e/ou coragem)? Não lhes jogariam pedras, se pudessem, e mesmo uma ou outra bosta? Não os acham bons de cuspir, num misto de desconfiança, repulsa e inveja? E, todavia, é vê-los, em momentos de aflição, de necessidade ou de interesse, a aplaudir, a sorrir, a beijocar, a pedir ou a enaltecer, à espera de alguma coisa em troca. Sejam bens materiais, sejam atenções, seja uma simples (e aparente ou não) demonstração de afeto (coisas a que, aliás, têm direito). Apresentada a petição ou satisfeito o rogo, e viradas costas, o mundo volta a girar nos eixos e entra-nos pelos ouvidos o refrão que fala em atirar pedras. Até à próxima visita do Zepelim. Maldita Geni, bendita cidade, ou vice-versa, ambas filhas diletas de uma ancestral, e talvez necessária, hipocrisia.
Escreve quinzenalmente à sexta-feira