Uma televisão para Groucho Marx


Só faltou uma nota artística. Às tantas vi um cãozito passar, no canto da imagem. Faltou um grande plano do cão, digamos três minutos, para observarmos o seu olhar.


Sr. Groucho Marx, isto é uma carta aberta para si. Esteja onde estiver (e deve ser num sítio bom, como merecem os que, com a ironia e o humor, mostram preocupação e inteligência), leia e medite. Dizem que, lá no seu tempo, afirmou que achava a televisão muito educativa porque, no momento em que alguém a ligava, o senhor ia à biblioteca e lia um livro. Ora, o que pretendo é que se reconcilie com a televisão vendo um pouco da nossa, que certamente vai achar educativa, especialmente nos dias quentes de agosto. Aliás, chamam silly a esta season, mas é uma injustiça, pois não é uma estação muito diferente das outras em termos de alinhamento noticioso e há coisas muito relevantes e profundas na televisão estival. Dou-lhe um exemplo. No dia 4 de agosto fui ao dentista, era já meio-dia e tal. A minha vez tardou e fui ficando na sala de espera, onde estava ligado um televisor sintonizado num canal generalista. As notícias da uma da tarde abriram com o incêndio que, na véspera, consumira automóveis num festival de verão. Agosto é, aliás, um mês fatídico para incêndios, quer florestais, quer especialmente marcantes (como este, o do Chiado ou o do BES). Pus-me a ver com atenção e, 17 minutos depois, quando me vieram chamar para a cadeira do dentista, ainda era o mesmo incêndio do festival Andanças que desfilava no ecrã. 

Foram 17 minutos muito educativos, sr. Marx, carregados de relevância, filosofia, informação e cultura. Não foi um apontamento do género “houve um incêndio em tal sítio, arderam carros, não houve feridos, as causas estão a ser apuradas”. Nada disso, nada de superficialidades frívolas, fomos ao fundo das coisas. Como estava o tempo. Qual era o espírito no festival, antes e depois do fogo. Se havia muito ou pouco pó. Se os automóveis eram ligeiros ou carrinhas, novos ou usados. Como se sentia a sra. Antónia, a menina Berta, o sr. Zé e o Xico depois do que acontecera. E o que comeram nesse dia e se lhes caiu bem. Que tipos de seguros existem para automóveis. Quantas pessoas da polícia e peritos estavam a investigar. E o que pensavam a sra. Maria, a prima Anabela, o padeiro e o leiteiro sobre as investigações. E se gostavam daquele tipo de música e o que pensavam acerca de festivais ou de incêndios. E tudo pontuado por intervenções elucidativas do repórter e debate em estúdio.

Uma coisa de categoria, de meter inveja a qualquer televisão do mundo fora e, certamente, capaz de o fazer morder a língua pelo seu dito espirituoso. Só faltou uma nota artística. Às tantas vi um cãozito passar, no canto da imagem. Faltou um grande plano do cão, digamos três minutos, para observarmos o seu olhar, algum latido que soltasse, uma coçadela com a pata traseira a que se atrevesse. E, em estúdio, um especialista a comentar o olhar, o latido e a coçadela e a relacioná-los com o incêndio. Aí sim, subiríamos aos patamares da mais alta educação com o cãozito do Andanças, tão significativo e icónico como “El Perro” de Goya.


Uma televisão para Groucho Marx


Só faltou uma nota artística. Às tantas vi um cãozito passar, no canto da imagem. Faltou um grande plano do cão, digamos três minutos, para observarmos o seu olhar.


Sr. Groucho Marx, isto é uma carta aberta para si. Esteja onde estiver (e deve ser num sítio bom, como merecem os que, com a ironia e o humor, mostram preocupação e inteligência), leia e medite. Dizem que, lá no seu tempo, afirmou que achava a televisão muito educativa porque, no momento em que alguém a ligava, o senhor ia à biblioteca e lia um livro. Ora, o que pretendo é que se reconcilie com a televisão vendo um pouco da nossa, que certamente vai achar educativa, especialmente nos dias quentes de agosto. Aliás, chamam silly a esta season, mas é uma injustiça, pois não é uma estação muito diferente das outras em termos de alinhamento noticioso e há coisas muito relevantes e profundas na televisão estival. Dou-lhe um exemplo. No dia 4 de agosto fui ao dentista, era já meio-dia e tal. A minha vez tardou e fui ficando na sala de espera, onde estava ligado um televisor sintonizado num canal generalista. As notícias da uma da tarde abriram com o incêndio que, na véspera, consumira automóveis num festival de verão. Agosto é, aliás, um mês fatídico para incêndios, quer florestais, quer especialmente marcantes (como este, o do Chiado ou o do BES). Pus-me a ver com atenção e, 17 minutos depois, quando me vieram chamar para a cadeira do dentista, ainda era o mesmo incêndio do festival Andanças que desfilava no ecrã. 

Foram 17 minutos muito educativos, sr. Marx, carregados de relevância, filosofia, informação e cultura. Não foi um apontamento do género “houve um incêndio em tal sítio, arderam carros, não houve feridos, as causas estão a ser apuradas”. Nada disso, nada de superficialidades frívolas, fomos ao fundo das coisas. Como estava o tempo. Qual era o espírito no festival, antes e depois do fogo. Se havia muito ou pouco pó. Se os automóveis eram ligeiros ou carrinhas, novos ou usados. Como se sentia a sra. Antónia, a menina Berta, o sr. Zé e o Xico depois do que acontecera. E o que comeram nesse dia e se lhes caiu bem. Que tipos de seguros existem para automóveis. Quantas pessoas da polícia e peritos estavam a investigar. E o que pensavam a sra. Maria, a prima Anabela, o padeiro e o leiteiro sobre as investigações. E se gostavam daquele tipo de música e o que pensavam acerca de festivais ou de incêndios. E tudo pontuado por intervenções elucidativas do repórter e debate em estúdio.

Uma coisa de categoria, de meter inveja a qualquer televisão do mundo fora e, certamente, capaz de o fazer morder a língua pelo seu dito espirituoso. Só faltou uma nota artística. Às tantas vi um cãozito passar, no canto da imagem. Faltou um grande plano do cão, digamos três minutos, para observarmos o seu olhar, algum latido que soltasse, uma coçadela com a pata traseira a que se atrevesse. E, em estúdio, um especialista a comentar o olhar, o latido e a coçadela e a relacioná-los com o incêndio. Aí sim, subiríamos aos patamares da mais alta educação com o cãozito do Andanças, tão significativo e icónico como “El Perro” de Goya.