Há uma vertigem própria da poesia, a de um tempo separado, e há uma distância que torna o espaço apenas reconhecível, e que dos dias faz uma vida através do talento para estranhar tudo, como tudo se quebra e nisso se reúne. No caminho feito de andar-se perdido, a atenção detém como pode o seu desamparo, e do cerco de pormenores vai ordenando as “miudezas malparadas do olhar”: um letreiro coberto de giestas, caído na gravilha, os joelhos sepultados nas urtigas, um horizonte fluído, a remexer as cinzas, o caminho-de-ferro que, nas férias grandes, dava o rosto ao Verão… Puxadas de redes que pousaram longamente no leito do tempo, as imagens que mais nos impressionam são aquelas a que os anos transmitiram pulsação e eco. A poesia não é uma memória, isso deixa-o claro o livro de estreia de Miguel Filipe Mochila, buscando antes a fractura que capta a síncope das coisas. “A mala/ desfeita sobre a cama/ é como o corpo aberto/ onde às vezes/ os dias bebem como os animais.” Bastam-lhe pequenas incisões para que o que começou como uma fotografia, mais que um efeito de desfocagem, divirja para contornos cada vez mais afastados daqueles em que a luz primeiro foi surpreendida.
“Tempo da impaciência” é um livro incomum na tão desarticulada paisagem da jovem poesia portuguesa, e é-o antes de mais por rejeitar a histeria que acende imagens como paus de fogo-de-artíficio. Não caindo nos infindáveis inventários de uma lírica auto-publicitária nem nos grandiosos enunciados que por aí se ficam, esta poesia aceita a dificuldade de espreitar o mundo de um ângulo indiscreto. Dominando a relação dos seus sentidos, não corre para os braços da ironia, evita a ladainha desgostosa, embora não deixe de olhar de frente o seu tempo. “Aprendes com eles tantas coisas./ Por exemplo que um nome se venera/ somente ao longe, mesmo que seja/ o princípio mais parco e destemido.// São os gatos em cantante precipício,/ penetrando enferrujados nas traseiras/ de hotéis e hospitais, e ronronando/ com a mesura certa em sustenido.// E há um que afina o lume ao rés de todos,/ traz o facho triste da fadiga,/ não poupa nada: desperdiça/ júbilo, ternura, palpitações.// Sabe que a vida há-de ser/ apenas um subúrbio da alegria,/ a necessária tralha fútil, o alarde,/ coisas de emprestar e devolver.”
O que mais surpreende nesta estreia é o não se sentir nela a ansiedade de provocar “uma mudança na paisagem poética”, como sinalizam os críticos nervosinhos sempre que querem canonizar um dos “novos”. “À noite, quando ligas o rádio,/ quase pedes que seja densa e triste e desolada/ a música,/ que dentro do som que ora esmaece se desfaça/ a cega borboleta da luz.” Se MFM virá ainda a crescer na sua voz, esta traz já no seu tom a serenidade de quem confia na radical autonomia do discurso poético, essa razão que encontra o seu caminho à margem dos grandes desígnios de cada época.
Tempo da impaciência,
de Miguel Filipe Mochila
Julho de 2016, pp. 70, €9,00