“As antigas civilizações estão a reerguer-se.” Roger Crowley
Afirmarmos que temos uma crise no espaço atlântico e europeu, para vários eurocratas e militantes ocidentais radicais, alimentados pela soberba e pela unipolaridade civilizacional, económica, política, militar e tecnológica ocidentais, é quase motivo não só para indignação como também para perseguição. Porque, para muitos deles (e até para outros mais distraídos e ignorantes), o que se passa é que o Ocidente e a Europa têm vindo a passar por mais uma crise de crescimento e alargamento de poder e de influencia. Sobretudo política, diplomática, normativa e de valores de vida. Como estão iludidos e errados. E antes pelo contrário. A Europa que nós gostávamos que existisse cada vez mais é uma miragem. Porquanto é uma Europa prisioneira não só do liberalismo corporativo por parte de alguns Estados, mas também por parte da ideologia laicista, materialista e até quase antirreligiosa que tem a França como porta-estandarte. A Europa que temos não é a Europa dos seus clássicos fundadores. De Robert Schuman, Jean Monet, Konrad Adenauer. Nem de gente do calibre de Helmut Kohl, François Mitterrand, Felipe González, Jacques Delors e tantos outros.
Não é a Europa da unidade dentro da diversidade. Não é a Europa do humanismo cristão. Não é a Europa das humanidades, da cultura. Não é a Europa das pessoas que a cultivaram e ajudaram a compreender e estruturar, como George Steiner, Vasco Graça Moura e muitos outros. Esta é a Europa em que até a religião quase tem de andar às escondidas (passe o exagero…). É a Europa dos números, da dualidade norte e sul, luteranos e calvinistas em detrimento de católicos do norte e do sul. Esta Europa é a Europa que numas coisas é firme na defesa do Estado de direito e dos direitos humanos e que noutras pouco é fiel a si própria nesse particular. Uma Europa que cada vez mais, infelizmente, faz lembrar um elefante numa loja de porcelana. Que esquece o mundo real. Que comete erros graves como o da gestão das relações com as suas fronteiras a leste e a sul. Que vive, mesmo que o não queira admitir, dependente dos chapéus militar e tecnológico dos EUA. Que se esquece que, em pleno século xxi, as antigas civilizações estão a reerguer-se. Que se esquece que em geopolítica o passado nunca morre e o mundo não é plano. E que os sentimentos de identidade e de pertença vêm sempre ao de cima. É sempre uma questão de tempo. Talvez nem sempre no curto prazo. Mas sempre no médio e longo prazo. Esta nossa Europa, e nós, europeus, que mesmo com aquilo a que chamamos problemas e preocupações não percebemos que o mundo é cada vez menos europeu e ocidental. O mundo tem mais de 7 mil milhões de pessoas e quase 200 países, e está cansado e farto da nossa imposição normativa e da nossa unipolaridade ocidental. Hoje é claro como a água que vivemos uma crise no espaço atlântico europeu. Os EUA, enquanto assumem a sua condição de potência do Pacífico, dão em simultâneo sinais de que estão fartos do mundo (só assim se percebe a emergência de forças eleitorais como o perigoso Donald Trump) – EUA que, quer no Atlântico Norte quer no Atlântico Sul, procuram novas alianças e estratégias, triangulares, como é o exemplo de continentes como a África e regiões como o espaço ibero-americano. Infelizmente, a nossa Europa continua iludida, como no passado se iludiam os senhores ricos descendentes das famílias tradicionais. Engana-se. O seu passado é importante. Mas não atender à realidade é um erro. Hoje, é triste. Mas é a verdade. Temos poucos grandes líderes e visionários, e mais gente mediana que está obcecada com os números. E com o iludirem-se que o mundo ainda não se apercebeu de que a Europa e o Ocidente não estão bem. Infelizmente, os sintomas de que a crise no espaço atlântico e europeu existe são muitos. Essa crise já não é apenas uma crise económica e nas contas públicas de vários países, sendo também uma crise de valores de vida e de credibilidade deste espaço geopolítico nas suas relações com toda a comunidade internacional. Exemplos não faltam. Com o Brexit, com Donald Trump, com Marine Le Pen, com Pablo Iglesias, com Tsipras e Viktor Orbán e outros do género. São os sinais dos tempos que vivemos. Tempos difíceis e muito desafiantes. Que, a serem vividos, nem todos estão à altura das suas responsabilidades. Porque algumas das antigas civilizações estão a reerguer-se e a Europa e o Ocidente teimam em fazer de conta que isso não está a acontecer. Veja-se a forma atabalhoada como têm gerido as suas relações com países como a Rússia, a Turquia e até, em muitos aspetos, com a China e a Índia.