O estranho caso da Menina Feliz


De todas as coisas, aquilo que mais a incomodou foi ter crescido num mundo envolvido na conformação – “vai-se andando”, “é como Deus quer”, “vamos devagarinho”, “caminhando lentamente”.


A Menina Feliz tinha nascido com as lágrimas próprias do começo. Berrou, esperneou e espantou-se com a cara dos pais, que a miravam “estupeficados”. Tinham querido que a menina nascesse, mas pareciam-lhe tão assustados. A menina, a quem lá dentro tinham dito que quando saísse teria de chorar para provar que estava viva, esqueceu-se das recomendações e chorou do medo que os seus lhe provocaram. “Que estranha receção, pensei que estavam à minha espera com balões, risadas e um comediante…”

O pai, que antes do nascimento fizera da barriga da mulher um consultório sentimental (falava, ria, desabafava com a filha que ainda não tinha nascido, a qualquer instante e sem respeitar horários), parecia-lhe uma estátua com pouca graça – tinha congelado. Já a mãe, que a paria e quem perdoava os gritos e gemidos (aquilo parecia doer), chorava compulsivamente, envolvida em ranho e suor e com uma roupa que, sinceramente, parecia tudo menos apropriado a uma festa de boas-vindas. A Menina Feliz tinha decidido nascer feliz, mas agora estava confusa. A coisa parecia mais complicada do que pensara, mas mesmo assim manteve a promessa de tentar. 

Cresceu com vários sorrisos e entusiasmos, entendeu com a idade que o ar assustado dos pais, quando a viram nascer, era apenas o amor em bruto, o amor destemido que os atingia com tanta força ao ponto de os assustar. Cresceu nesse amor maior, mas não se livrou dos fretes, das tristezas, dos cansaços – mais vindos dos outros do que dela. 

De todas as coisas, aquilo que mais a incomodou foi ter crescido num mundo envolvido na conformação – “vai-se andando”, “é como Deus quer”, “vamos devagarinho”, “caminhando lentamente” eram algumas das expressões que a Menina Feliz odiava ouvir e era incapaz de dizer. As pessoas eram chatas e cinzentas e queriam que o resto dos outros fossem também chatos e cinzentos, como se não existissem outras cores e não fosse possível misturá-las.

Chamavam-lhe Menina Feliz mas complicavam-lhe a existência, dizendo-lhe que a vida era um aglomerado de clichés, uma obrigação, uma coisa para ser suportada, um “dia igual aos outros”.

Aos dissabores próprios da caminhada, a Menina Feliz estranhava a sua fácil forma de lidar com eles. Não os temia. Sabia–os parte da vida, mas não parte do seu ar. Não conseguia desistir, não conseguia desesperar totalmente, não conseguia falhar na promessa de ser para sempre a Menina Feliz. E de cada vez que lhe perguntavam como estava, olhava verdadeiramente para dentro de si, sentia o sangue a correr, o coração a palpitar, mirava as mãos e as pernas e respondia, com um brilho nos olhos de genuíno encantamento, que estava viva. Que se sentia viva. 

E os senhores-cliché achavam-na esquisita e maluca e sussurravam por aí que aquele era o estranho caso da Menina Feliz.


O estranho caso da Menina Feliz


De todas as coisas, aquilo que mais a incomodou foi ter crescido num mundo envolvido na conformação - “vai-se andando”, “é como Deus quer”, “vamos devagarinho”, “caminhando lentamente”.


A Menina Feliz tinha nascido com as lágrimas próprias do começo. Berrou, esperneou e espantou-se com a cara dos pais, que a miravam “estupeficados”. Tinham querido que a menina nascesse, mas pareciam-lhe tão assustados. A menina, a quem lá dentro tinham dito que quando saísse teria de chorar para provar que estava viva, esqueceu-se das recomendações e chorou do medo que os seus lhe provocaram. “Que estranha receção, pensei que estavam à minha espera com balões, risadas e um comediante…”

O pai, que antes do nascimento fizera da barriga da mulher um consultório sentimental (falava, ria, desabafava com a filha que ainda não tinha nascido, a qualquer instante e sem respeitar horários), parecia-lhe uma estátua com pouca graça – tinha congelado. Já a mãe, que a paria e quem perdoava os gritos e gemidos (aquilo parecia doer), chorava compulsivamente, envolvida em ranho e suor e com uma roupa que, sinceramente, parecia tudo menos apropriado a uma festa de boas-vindas. A Menina Feliz tinha decidido nascer feliz, mas agora estava confusa. A coisa parecia mais complicada do que pensara, mas mesmo assim manteve a promessa de tentar. 

Cresceu com vários sorrisos e entusiasmos, entendeu com a idade que o ar assustado dos pais, quando a viram nascer, era apenas o amor em bruto, o amor destemido que os atingia com tanta força ao ponto de os assustar. Cresceu nesse amor maior, mas não se livrou dos fretes, das tristezas, dos cansaços – mais vindos dos outros do que dela. 

De todas as coisas, aquilo que mais a incomodou foi ter crescido num mundo envolvido na conformação – “vai-se andando”, “é como Deus quer”, “vamos devagarinho”, “caminhando lentamente” eram algumas das expressões que a Menina Feliz odiava ouvir e era incapaz de dizer. As pessoas eram chatas e cinzentas e queriam que o resto dos outros fossem também chatos e cinzentos, como se não existissem outras cores e não fosse possível misturá-las.

Chamavam-lhe Menina Feliz mas complicavam-lhe a existência, dizendo-lhe que a vida era um aglomerado de clichés, uma obrigação, uma coisa para ser suportada, um “dia igual aos outros”.

Aos dissabores próprios da caminhada, a Menina Feliz estranhava a sua fácil forma de lidar com eles. Não os temia. Sabia–os parte da vida, mas não parte do seu ar. Não conseguia desistir, não conseguia desesperar totalmente, não conseguia falhar na promessa de ser para sempre a Menina Feliz. E de cada vez que lhe perguntavam como estava, olhava verdadeiramente para dentro de si, sentia o sangue a correr, o coração a palpitar, mirava as mãos e as pernas e respondia, com um brilho nos olhos de genuíno encantamento, que estava viva. Que se sentia viva. 

E os senhores-cliché achavam-na esquisita e maluca e sussurravam por aí que aquele era o estranho caso da Menina Feliz.