Era uma vez … Um homem carregado de contradições, as mesmas que todos os homens trazem em si, mas neste eram, não só mais profundas, mas também mais exuberantes, como se a exuberância fosse um remédio para as tentar suportar. Era um homem cansado e com feridas, daquelas que vêm lá de longe, do início dos tempos de cada um – as mais difíceis de sarar, as que às vezes nem sabemos que temos. Mas o seu cansaço era combatido com energia (mais uma contradição), abundante e frenética. O homem era um caçador, mas não de animais. Nem sequer de prémios, embora algumas das suas presas valessem mais do que isso e o fizessem subir acima de honrarias e condecorações. Essas presas quase lhe curavam as feridas, mesmo aquelas que ele não sabia bem onde doíam e de onde vinham. E um homem assim – herói deste “era uma vez” – só poderia ser uma de duas coisas, como convém a um caçador que vê tudo a preto e branco e para quem o mundo é simples, clarinho e linear, como convém a alguém que, com o peso das primeiras feridas, ficou para sempre com um pé na geografia da infância: ou ladrão ou polícia, ou índio ou cowboy.
Ora, ele escolheu – ou a vida pô-lo lá, às vezes é só disso que se trata – ser polícia (ou, como se diz numa versão do português mais aberta e cantada, policial). Estava, pois, sempre do lado dos bons. Caçava os maus, e tinha uma carteira de cromos que engrossava a olhos vistos. Caçava de tudo, desde que na sua cartilha estivessem no lado dos maus, mas tinha preferência por Pikachus, os alvos mais apetecidos. Tal como os caçadores de mato que preferem (mesmo que o não digam ou não possam) os big five, o herói desta fábula tinha especial apetite por alvos graúdos. Só que a sua não era uma appmania da Nintendo, não era virtual, embora caçasse na vida real como se estivesse a andar por aí, sem tirar os olhos do ecrã, atropelando tudo e todos, a apanhar bicharada de várias cores. Às vezes o vício pelos jogos faz esquecer a importância do vício pela vida, e o fascínio por bonecos faz ver bonecos em todo o lado. Mas neste caso não era um jogo a contaminar a vida, era uma vida vivida como se fosse um jogo. Descaradamente. E com alvos de carne e osso como se fossem bonecos.
E os Pikachus caçados, desprovidos do superpoder da electricidade, iam caindo que nem tordos, uns para nunca mais se levantarem, outros quebrados ou desasados. E o nosso homem trocava cromos da sua coleção com outros caçadores, daqueles que se dedicavam à mesma caça mas com outras armas. Armas não policiais, mas às vezes tão ou mais letais. Embora às escondidas, trocavam cromos e favores, confraternizavam, alegravam-se mutuamente, quase lambiam as feridas uns dos outros. E assim iam, entusiasmados e rua fora, driblando obstáculos, pisando incautos, num frenesim de jogatina. Go! Go! Pois ainda não apanharam todos, têm que completar a coleção. E exibi-la, orgulhosos, aos outros miúdos com quem imaginam que estão a competir, na sua linear (embora mortífera) geografia infantil.
Escreve quinzenalmente à sexta-feira