Danyèl Waro. “Quero que a minha música seja o mais espiritual possível”

Danyèl Waro. “Quero que a minha música seja o mais espiritual possível”


O músico da Ilha da Reunião, representante máximo do estilo maloya, esteve no palco do Castelo de Sines, no festival Músicas do Mundo


A cor da sua pele deveria ter-lhe negado aquilo que é a sua vida hoje. Era, pelo menos, isso que estava escrito. Filho de gente do campo, em Trois-Mares, na Ilha da Reunião, cresceu sem vida fácil e isso da música era luxo distante para si. Apesar do cenário adverso, descobriu o poder da palavra através da voz de Georges Brassens, que lhe serviu de inspiração para, também ele, começar a brincar com as palavras, mas em crioulo. Foi a proximidade ao Partido Comunista da Reunião que o fez descobrir a maloya, estilo tradicional da ilha, associado ao esclavagismo nas plantações de cana-de-açúcar, cantado pelos trabalhadores de origens africanas, malgaxes e indianas, que havia sido banido mas que acabou recuperado como uma espécie de hino das reivindicações do partido de esquerda. Cinco anos depois de ter assistido, em 1970, a um concerto de Firmin Viry, deu o seu primeiro concerto em nome próprio, acompanhado por um grupo de jovens agricultores. Mas logo de seguida é chamado para cumprir serviço militar e, como se recusa a vestir um uniforme, acaba preso durante dois anos. Durante a cárcere escreve os seus primeiros poemas em crioulo e, após a libertação, dedica-se finalmente a uma carreira musical. O músico e poeta, prémio WOMEX 2010, que em palco toca os instrumentos que faz, como o kayamb, de tez e cabelo claros, tornou-se o improvável rosto da maloya, também referido como o blues dos escravos, e o mais internacional dos músicos da Ilha da Reunião.  

Como explica o magnetismo das músicas do mundo – como pudemos assistir aqui no festival Músicas do Mundo de Sines – e que permite que uma plateia repleta de pessoas se deixe conquistar por um concerto do qual não percebem nada do que é dito?

Não sei explicar, não sei mesmo. Quando comecei a tocar, o meu desejo era fazer passar a minha mensagem. Por isso tocava na Reunião apenas para aqueles que me compreendiam. Mas percebi que isso nem sequer é verdadeiro porque muitos dos naturais da Reunião também não compreendem tudo o que eu canto, pois canto em crioulo. Depois, quando comecei a sair da Reunião, para tocar noutros países onde efetivamente ninguém compreende as palavras que canto, comecei a sentir que havia um sentimento, uma emoção, entre mim e as pessoas que me ouviam. Não são as palavras, mas há qualquer coisa que passa para as pessoas.

Os seus concertos têm algo que chega a soar a místico, e mesmo ao vê-lo em palco parece estar quase em transe.

Acho que a própria maloya, pelo seu ritmo, pela voz, pela melodia, pela sua musicalidade, tem qualquer coisa de místico, até de sagrado. Pelo menos é isso que desejo. Quero que a minha música seja o mais profunda possível, o mais espiritual possível, o mais divina possível. Quero dar todo esse valor, todo esse peso às palavras que canto e à música que toco. É tudo isto que me motiva. E temos de saber cantar as palavras, porque as palavras são como uma oração, como um encantamento. Mesmo quando não nos entendem.

Não deixa de ser curioso que um músico que diz sempre que considera as palavras muito importantes seja apreciado por pessoas que não compreendem o que diz. Isso nunca o deixa frustrado?

Não. Para mim palavras e música têm de andar sempre juntas.

É justamente porque reconhece a grande importância das palavras que frequentemente escolhe como temáticas os problemas sociais da Ilha da Reunião?

Sim, mas não apenas por isso. Mas ainda mais importante é o facto de, essas músicas em que abordo os nossos problemas, se tornarem universais. Ao falar de nós, de um local especifico e dos problemas desse local, acabamos por falar de todos os humanos. Penso que todos os humanos vivem os mesmos sentimentos: o amor, o prazer, o sofrimento, a raiva, o exílio.

Acha que, nos últimos tempos, tendemos a esquecer-nos que os problemas de uma pequena região não são assim tão diferentes dos problemas do resto do mundo?

Com toda a certeza. Mas, para mim, a universalidade só faz sentido quando reconhecemos as diferenças, quando as aceitamos e quando aceitamos partilhar essas mesmas diferenças, mas também as semelhanças. Não podemos querer ser todos iguais aos países que têm mais dinheiro, como a América. Isso não me interessa. É preciso resistir a estes pensamentos para sermos livres, para amarmos e sermos amados.

O papel do músico do mundo é também esse de fazer ver as diferenças e as semelhanças?

O nosso papel é fazer ver como nos parecemos todos dentro das nossas diferenças. Nascemos todos no mesmo planeta, na mesma humanidade, temos todos os mesmos sentimentos.

É o rosto da maloya, um estilo típico da Ilha da Reunião, que no entanto era associado aos negros, sendo inclusive apelidado do ‘blues dos escravos’…

É a origem, a maloya era uma música principalmente africana, mas que reflete o facto de a Ilha da Reunião ser um local que recebeu pessoas diferentes, vindas de locais muitos variados, como de Moçambique, Madagáscar, até de Portugal. A Reunião é feita de muitas misturas e a maloya reflete essas misturas.

Mas quando começou a cantar a maloya sentiu o racismo, o preconceito, por se apropriar de uma música associada a negros e, ainda por cima, a estar a renovar?

Quando comecei a cantar, comecei associado ao Partido Comunista da Reunião, que foi o responsável pela recuperação da maloya e isso ajudou-me. Mas é verdade que mudei completamente a imagem do cantor de maloya e que essa imagem era de alguém quase sempre negra. Achavam que eu, com a minha pele clara, cabelo claro e de óculos, tinha ar de professor. Viam-me como uma espécie de estrangeiro, mas eu não sou estrangeiro nenhum. Nessa altura podia ter-me retirado, ter achado que não tinha o direito de cantar a maloya. Mas nunca pus essa hipótese.

Hoje em dia tornou-se o oposto: é visto como o grande rosto da maloya e o representante internacional da Ilha da Reunião. Sente esse peso?

Não, porque nunca me ponho nesse lugar de embaixador ou de representante da nada. Faço o que quero, faço o meu caminho, à minha maneira e à minha velocidade. Não sigo o caminho decidido pelos outros. Sou um militante da maloya, e um militante da política do meu país. Não faço o que os outros acham que devo fazer. Quero ter liberdade total para me cantar. Até porque eu canto por mim e não pelos outros. Mas quando canto por mim acabo por cantar também o que os outros sentem. O meu caminho artístico é um caminho de combate, um caminho espiritual e também um caminho político. Mesmo quando não parece que esteja a ser político.