Confusão típica de um pós-concerto. A banda reunida, os convidados entram no camarim para saudar os músicos, os jornalistas aglomeram-se para as entrevistas que se seguem. Pelo meio, David Murray, visivelmente cansado depois de, mais uma vez, ter subido ao palco do Castelo de Sines, no âmbito do Festival Músicas do Mundo, comenta para os outros elementos da banda, também no camarim. “Ele tem um bom guitarrista”, referindo-se ao libanês, Imed Alibi, já em palco para o seu concerto. Torna-se inevitável que a conversa com o saxofonista, um dos nomes maiores do jazz, com 175 álbuns lançados, comece por aí.
Está sempre atento ao trabalho dos outros músicos, mesmo que seja no meio da confusão de um backstage?
Tenho de estar, tenho ouvidos! (risos) Quando tocamos num festival temos a oportunidade de ouvir alguma da melhor música do mundo. As pessoas que fazem tournées, sobretudo os que são de países mais longínquos, normalmente são mesmo os melhores, foram escolhidos para representar os seus países e pagam- -lhes para isso. Em cidades como Nova Iorque há músicos a mais, nunca poderíamos ouvir todos. No passado, em Nova Iorque, as pessoas davam cartões-de-visita, agora dão CDs, que fizeram sozinhos.
É uma fase difícil para quem é ou tenta ser músico?
Sim, somos muitos, demasiados.
O seu caso é diferente. Já cá anda há muito tempo.
Sim, mas tive de lutar. Estou nesta indústria há 40 anos, toco desde os nove e ando na estrada a tocar música profissionalmente desde os 13. Tenho 61.
Sempre soube que queria tocar jazz?
O meu irmão tocava clarinete, a minha mãe tocava piano, o meu pai tocava guitarra e o meu primo tocava trompete. Fazia-lhes falta um saxofone. Por isso, assim que tive uma oportunidade arranjei um. Mas o meu pai não mo deu: levou-me a uma instituição de crédito e fez-me pedir um empréstimo de 700 dólares para comprar o meu próprio saxofone. Eu tinha 11 anos.
Como é que lhe concederiam um crédito com essa idade?
Eu já trabalhava, engraxava sapatos. E também começava a dar concertos. Tinha um trio e havia um restaurante chamado Shakey’s Pizza que tinha umas 30 lojas pela Califórnia e, não sei como, mas conseguimos um contrato para tocar em todas as lojas deles. Eu era só um rapaz, mas acho que nos pagavam qualquer coisa como 200 dólares por concerto. Num instante paguei o meu saxofone.
Mas nunca teve dúvidas em seguir a música como profissão?
Era a escolha mais fácil para mim. A minha mãe era uma grande música mas morreu quando eu tinha 13 anos. Acho que a música foi o legado que ela me deixou. Não por obrigação, mas porque era algo de que gostava mesmo e em que era bom. Mas a verdade é que cheguei a querer ser advogado, só que era preciso estudar muitos anos. E agora já é tarde demais.
Mas acabou por estudar música quase tantos anos como teria estudado Direito.
Sim, tive muitas aulas de música e inclusive tenho um doutoramento em Música. Quer dizer, a verdade é que tenho um grau de doutor honoris causa, dado pela Universidade de Pomona. Deram-me esse título pelos feitos que atingi ao longo da minha vida profissional: gravei 175 álbuns, dei aulas em todas as grandes universidades. Sinto muito orgulho no que atingi e gosto que outras pessoas também sintam esse orgulho.
Como é que alguém com um currículo como o seu acaba a viver parte do ano em Sines?
Por causa da minha mulher, Valerie, com quem tenho dois filhos. Ela é que conhecia o Carlos Seixas [programador do Festival Músicas do Mundo] e tudo começou com ela a trazer algumas bandas africanas para tocarem aqui no festival. E um dia vim também e comecei a gostar muito de Sines. Acabámos por comprar uma casa, linda, que reconstruímos toda.
Mas o que é que o conquistou na cidade?
As pessoas. Apesar de ser uma cidade pequena, não é uma cidade burra. Basta ver a forma como abraçam este festival. Muitas das pessoas que vivem aqui podiam estar em qualquer lugar do mundo, mas decidiram ficar e tentar fazer algo pela sua cidade. Há muitas pessoas brilhantes em Sines e eu gosto de fazer parte dessa equipa.
E Sines costuma inspirá-lo para trabalhar?
Sim! Agora estou a escrever um livro sobre a minha história. Mas agora, depois de 18 anos noutras cidades, voltei a ter casa em Nova Iorque, no Harlem, e portanto tenho passado muito tempo por lá. Ainda assim, vou aproveitar os próximos tempos aqui em Sines para escrever. E quanto ao festival acho que já aqui toco há umas quatro edições e é sempre uma inspiração.
Este ano trouxe consigo o poeta norte-americano Saul Williams. Por vezes sente essa necessidade de juntar palavras à sua música?
Sim, sinto. Porque eu gostava de saber cantar. O meu irmão canta, a minha mãe além de pianista também cantava. E eu não sei mesmo cantar, mas tenho muitas palavras na minha cabeça. Só que nem sequer sou um bom poeta, apesar de que adorava saber escrever.
Porque escolheu um poeta das ruas?
A verdade é que ele não é das ruas, mas isso não significa que não possa falar das ruas. Porque quem é realmente das ruas não conseguiria escrever como ele escreve. Ele é um gentleman.
Como se conheceram?
No funeral do Amiri Baraka, que era um poeta com quem trabalhei muito e que, em outubro, vou homenagear num concerto. Fizemos juntos um álbum chamado “New Music, New Poetry” (1982), e ele escreveu um livro chamado “Black Music”, em 1967, que é uma obra fundamental sobre o jazz. E também trabalhou com o Jack Kerouac e com o Allen Ginsberg. Ele morreu em 2014 e foi no seu funeral que vi o Saul Williams. Depois, através da minha empresa de produção entrei em contacto com ele e começámos a trabalhar juntos. Depois do Baraka precisava de encontrar mais um visionário e é ele. Curiosamente o Baraka era muito mais velho do que eu e o Saul é muito mais novo, por isso vai conseguir prolongar a minha vida… (risos)
Costuma opinar acerca daquilo que ele está a escrever?
Não, mas escolho os poemas que quero musicar.
E quais são os poemas que costuma escolher? Quais são as temáticas que o interessam?
Ele cria imagens de coisas que normalmente não são faladas. E fala dos problemas do mundo, da ecologia, e fala daquilo que os políticos de esquerda falam.
Em relação à política, como americano, numa altura em que se discutem aquelas que provavelmente serão as mais importantes presidenciais da história, disputadas entre Hillary Clinton e Donald Trump, esse é um tema particularmente interessante para si?
Sim. Se o Donald Trump vencer todo o mundo terá problemas. Ele pode rebentar com todo o mundo. O Donald Trump é a epítome da ignorância. Acho que ele não tem hipótese, mas as pessoas são loucas. Também achava que o Brexit não tinha hipóteses e basta ver o que aconteceu. Pode acontecer. Sobretudo porque o problema é que a América está construída no racismo. E esta situação faz-me recordar os tempos de Hitler, as pessoas podem ser levadas a pensar que Trump é um salvador. Por exemplo, a campanha do Trump continua a dizer que querem o seu país de volta. Mas de volta de quem? Do Barack Obama? Querem o país de volta dos negros? Mas nós roubámos-lhe o país? Esse é um caminho muito perigoso.