Segunda-feira, 26 de Julho de 1976. Carlos Lopes faz história arrecadando a primeira medalha olímpica no atletismo para Portugal. Ultrapassado por Lasse Viren a 450 metros da meta na final dos 10 mil metros, fica com prata mas é aplaudido como herói nacional. Foi descrito como uma “honrosa exceção à nossa tradicional mediocridade” e a imprensa não poupou nos perfis do atleta de 29 anos, natural de uma aldeia em Viseu, Vildemoinhos. “O rapaz entrou-nos em casa há poucos meses. Tipo de português vulgaríssimo, com poucas falas, um pouco baixo, o que surpreendia porque sempre se disse que os aletas tinham de ser matulões e peitudos”, escreveu a “Flama”. Oito anos depois, Carlos Lopes, que hoje continua a apoiar os atletas do Sporting, conseguiria finalmente o ouro. Continua homem de poucas falas e tenta dar-nos a volta, como se a chamada fosse engano. Vamos falar de 1976? “Mas acha que me lembro? Já tenho pouca memória, as minhas pilhas não são Duracell, são das mais fracas.” Insistimos, até porque este ano pode de novo ser grande para o desporto nacional, e ele lá assente. Em 1976, dizia a imprensa, era o “ano zero”. Não havia medalhas desde os anos 60 e Portugal só tinha marcas olímpicas no hipismo, esgrima e vela. O segredo: pôr o trabalho à frente do talento, mas Carlos Lopes diz que não é de profecias.
Qual era o estado de espírito na final dos 10 mil metros?
Ou ganhava ou perdia. O que eu fazia era trabalhar para não perder.
Na imprensa contavam nesse ano que, quando veio de Viseu para Lisboa, o seu treino era dar voltas do estádio do Sporting.
Isso não era bem assim. Há muitas coisas que se dizem que sabe perfeitamente que não correspondem à verdade.
Então como é que foi?
Havia um método de trabalho, a gente acreditava nele e funcionávamos nesse espírito. Espírito combativo, de chegar mais longe, isso sim, mas voltinhas ao estádio…
Na revista diziam que, quem o via naquelas voltas ao estádio, achava que era “mais um tipo xarope”.
Sim, criou-se assim a ideia que eu tinha uma pancada meia esquisita, que andava a fugir no meio da estrada, dos carros e dos camiões. Chamavam-me nomes, isso era verdade. Não havia tradição.
E como era isso de não ter corpo de atleta, de não ser peitudo?
Peitudo não, mas peito feito sim. E até se costuma dizer que os homens não se medem aos palmos.
Foi a primeira medalha olímpica do país no atletismo. Tinha noção de estar a fazer história?
Claro. sabia onde estava e os terrenos que pisava. Um tipo quando vai aos Jogos Olímpicos tem noção da montra que é, sabemos perfeitamente o que vale uma medalha e que, para chegar àquele ponto e discutir uma medalha, nada cai do céu. A sorte dá muito trabalho.
Tinha 29 anos. O que lhe trouxe a fama?
Tal como hoje, a fama para mim vale o que vale. Não trouxe nada. Sabermos o que valemos e confiarmos nos nossos princípios, isso sim é importante. A fama nunca me subiu a cabeça porque eu nunca deixei de ser quem era.
Nas olimpíadas de Montreal, a delegação portuguesa tinha 19 atletas. Desta vez são 92. O que mudou mais nestes 40 anos?
Aquela medalha – e o campeonato do mundo de corta-mato meio ano antes – deu a conhecer as nossas competências, as nossas qualidades. Fez-nos acreditar no nosso trabalho. A partir dali houve mais investimento técnico e acho que a medalha veio trazer nova alma, novo respeito pelo país, novas convicções e novos valores e um sentimento de que somos iguais a todos e podemos ganhar coisas desde que nos dediquemos de alma e coração ao que gostamos de fazer. Portanto, com essa evolução, não me surpreende nada esta quantidade de pessoas que estão nos Jogos, todos com um sentimento único de representar cada vez mais e melhor Portugal e de transcenderem os seus resultados.
Lembra-se do momento em que Viren o ultrapassou a 450 metros da meta.
Claro que lembro.
O que é que sentiu?
O que é que senti… eu já estava a prever que aquilo ia acontecer assim. Se não fosse ali tinha sido um pouco mais à frente ou mais atrás. Quatro anos antes já tinha percebido como é que ele corria. A grande surpresa não foi o que ele fez. A grande surpresa foi que eu era o melhor atleta do mundo em 10 mil metros e perdi. Mas hoje sabemos as razões. O Viren fazia transfusões de sangue. Mesmo aqueles que eram muito mais rápidos do que ele não conseguiam vencê-lo. Eu não fugi à regra.
Continuamos a ouvir falar de casos de doping. Ao longo da sua carreira, nunca foi aliciado com drogas para melhorar o seu desempenho?
Não sei qual é a motivação ou o interesse de quem toma drogas e não posso responder por essa gente. Eu sabia as minhas capacidades e nunca deixei de ganhar medalhas. Aquilo que faz outros continuarem a fazê-lo, não sei responder nem quero porque sou anti atletas desse género.
Mas alguma vez foi aliciado?
Como nunca precisei, nunca me vieram com essas coisas. Mesmo que fosse aliciado, só tinha uma resposta.
O que tem mais presente desse verão?
O sentimento de dever cumprido, da responsabilidade daquele momento no desporto nacional.
Como foi a receção em Lisboa?
Como sempre. As pessoas são bem recebidas. O problema vem depois, o reverso da medalha é que é uma chatice.
Então?
Rapidamente se esquecem. Não os portugueses, mas quem de direito.
Na impensa dizia-se que tinham gostado dos alojamentos na aldeia olímpica, mas a comida era má. Este ano também há críticas. Percebe os atletas?
O alojamento era espetacular. Tem sido sempre bom. Este ano já ouvi críticas mas, sem ver pelos meus olhos, não posso fazer comentários. Aquilo é só por 20 dias, não é um hotel de luxo, é para a gente competir. Embora também tenha ficado em hotéis.
As revistas falavam da falta de condições dos atletas para treinarem. Hoje continuamos a ouvir críticas à falta de apoio em muitas modalidades.
No meu tempo podia ouvir essas críticas, hoje há críticas diferentes. Mas se virmos as condições que tínhamos e as que têm hoje, é uma diferença do dia para a noite.
Viria a ganhar o outro em 1984. De que medalha tem mais orgulho?
Tenho das duas, pelo esforço que representam e pela alegria que deram aos portugueses. Só que uma vale mais do que a outra, ouro é ouro e prata é prata.
Estão em sua casa?
A de ouro agora está no Sporting e outra está guardada.
Que mensagem gostava de passar aos atletas da comitiva portuguesa no Rio de Janeiro?
Eu não tenho de dizer nada. As pessoas que vão aos Jogos são atletas feitos, com responsabilidade, são os melhores. Cada um sabe a sua missão. Aquilo que digo é que trabalhem bem, acreditem nas suas capacidades. Quando se vai para os jogos só há uma missão: ou se ganha ou se ganha.
Aposta em algum atleta em particular?
Sou daqueles atletas que é assim: se fosse eu, apostava em mim. Cada um deve apostar em si próprio.
Mas vamos ter medalhas?
É possível que sim. Temos atletas com valor suficiente e capacidades superiores. Podemos esperar tudo.
Em 76, tendo ficado em segundo lugar, foi recebido como grande campeão. Isso deixou-o feliz?
Claro, foi histórico. Tão histórico como o ouro.
Ainda corre de vez em quando?
Não, a idade já não permite. Com 69 anos já tenho idade para ter juízo. Houve um médico que me disse: ou paras ou cadeirinha de rodas e eu fiz a minha escolha.
Isso foi quando?
Há 15 ou 20 anos.
Não tem saudades?
Se fosse saudosista andava todos os dias a rezar para voltar a fazer o que fiz. Não pode ser.
Passados estes anos todos, que balanço faz da sua carreira?
Tenho muita dificuldade de falar de mim. A história serve para contar o resto. As minhas origens não abandonei, os meus valores também não. Acho que correu bem.
E agora, o que faz no dia a dia no atletismo do Sporting?
É lidar com a pressão dos atletas, a chatearem-me a cabeça porque querem cada vez mais. [Risos]. Estou a brincar, é só porque tenho um atleta aqui à frente.
Há algum segredo para o sucesso que costume transmitir?
Não, não sou dessas profecias. O segredo é o trabalho e o talento. Quando se põe o trabalho à frente, as coisas acontecem. O problema é que as vezes há talento mas depois não trabalham e passam ao lado de uma grande carreira.
Quando se é miúdo há muitas distrações. Não passou por isso?
Não. Eu comecei a trabalhar muito cedo e ainda hoje trabalho. Não tinha tempo para isso. Mesmo fazendo alta competição, nunca deixei de trabalhar.
Quando foi aos Jogos ainda era servente de pedreiro?
Não, nessa altura era torneiro mecânico e depois trabalhei num banco.
Metia férias para ir competir?
Não, ia. Tanto nos últimos jogos em que participei como em 1976, quando chegou a autorização já eu tinha vindo com as medalhas. E isso ainda hoje funciona assim. Mas pronto, foram anos felizes.
1976 foi o primeiro?
Não, desde o início da minha carreira, logo nos primeiros meses, fui sempre feliz. Fazia aquilo de que gostava e quando se faz aquilo de que se gosta não há limites, tudo é possível.
Moniz Pereira foi um bom professor?
Eu tive três pessoas muito influentes na minha carreira: o professor Sarmento, o Raimundo Mendes, meu técnico no Sporting, e depois o Moniz Pereira.
O que tiveram de limar?
O primeiro, o prof. Sarmento, disse-me que eu tinha valor. Eu era muito ferrugento nos meus exercícios e deu-me preparação física nos primeiros tempos.
Ferrugento como?
[Risos] Não tinha ginástica nenhuma. Houve momentos em que quis abandonar a pista e foi ele que me incutiu para continuar. Depois o Raimundo Mendes era o meu técnico quando saía do emprego e chegava tarde a Alvalade para treinar. O Moniz Pereira continuou esse acompanhamento.
Um dos artigos de 1976 contava que passou fome em miúdo. Uma pessoa quando tem terra para cultivar, quando tem animais para se comer e uma cozinheira fabulosa como a minha mãe era, acha que eu passei fome? É o tal problema das revistas.
Uma pessoa quando tem terra para cultivar, quando tem animais para se comere uma cozinheira fabulosa como a minha mãe era, acha que eu passei fome? É o tal problema das revistas.
Os seus pais viam as provas? Ficaram orgulhos?
Naturalmente que sim. A minha mãe não gostava de ver mas o meu pai via.
Quando é que pensou meter-se no atletismo? Era um sonho de miúdo?
Não, já tinha 17 anos.
E foi porquê?
Eu fugia dos meus amigos e eles achavam que eu tinha talento. Comecei a correr na brincadeira.
Mas corria mais rápido do que eles?
Não era mais rápido, aguentava era mais tempo.
Quanto tempo?
O que fosse necessário.
Hoje está na moda andar na rua a correr. O que pensa quando vê esses corredores?
Acho que em parte sou um bocado responsável por isso acontecer. Fui apelidado de maluco, de malandro, hoje toda a gente corre.
Hoje teria muita companhia.
[risos] Não teria, porque eu era rápido. As pessoas é mais para manutenção.
E é verdade que comia feijoada antes das provas? Estavam aqui a contar-me uns colegas…
Mande esses gajos dar uma volta ao bilhar grande. Eu gosto muito de feijoadas ainda hoje, mas acha que eu ia comer feijoadas antes da prova? As pessoas gostam de pôr veneno e a menina vai por esse veneno. Eu gosto muito de feijoada, sou muito boa boca. De umas coisas gosto mais do que outras, claro, mas antes das competições tinha muito tino. Dentro do reforço de hidratos de carbono alinhava em tudo mas sempre com cuidado.