Um encontro perigoso


Sonhei com a mulher que me abordou na rua. Vejo-me a dar-lhe todas as notas da carteira e a pedir-lhe perdão. Mas já é demasiado tarde. Estou consciente de que está condenada


Um destes dias, ao percorrer uma rua de Lisboa numa tarde em que o calor parecia derreter todas as coisas, fui abordado por uma mulher que me fez parar.

Na ânsia de uma sombra que me protegesse da inclemência soalheira que me picava o corpo, a mulher pareceu-me ter uns 30 anos. Vestia a parecer mais nova, uma saia muito curta e uma blusa floreada.

Semicerrava os olhos, parecia ser curta de vista, mas também podia ser pelo sol que lhe retraía o rosto e a impedia de os abrir para nós. Ou talvez pensasse que tudo não valia a pena o esforço para ver mais.

O seu aspeto de ninfa atormentada fez-me lembrar alguém, ao ponto de por um momento quase me ter parecido que a conhecia de algures, mas até hoje não descobri.

A rapariga começou a falar com grande profundidade sobre a desigualdade social e a corrupção dos políticos.

Mencionou a falta de qualidade da classe política e de imediato fez uma reflexão sobre as carências da nossa democracia. Criticou a incapacidade dos governos para resolver os problemas das pessoas simples. 

Arremeteu contra o sem-vergonha do Durão Barroso e os mafiosos da banca, a desagregação da União Europeia e a austeridade dos ricos ainda mais ricos. Lembrou os refugiados a boiar, o medo, a pobreza e o desemprego.

Por último, ainda ironizou que, com tantos pais e avós da democracia, nós, os carecidos de justiça social e económica, só podíamos mesmo ser os bastardos do regime.

Estava fascinado escutando a força profética das suas palavras, sobre as quais a ingenuidade só acentuava a credibilidade do seu discurso. 

Fixei-me no seu cabelo perfeito que lhe chegava até aos ombros e que se mantinha imóvel enquanto agitava as mãos, que desenhavam figuras no ar como a ilustrar a sua narrativa.

Em jovem, admirava os missionários que iam a África conquistar almas, lagos e savanas. “Dr. Livingstone, presumo?” E esta mulher parecia uma enviada por Deus naquela avenida quase deserta de Lisboa, com o sol a queimar-nos a 40 graus.

Era a pessoa mais inadequada no lugar mais absurdo, mas irradiava algo que não é habitual, diferente de todos os que connosco se cruzam a pedinchar palavra, algo difícil de definir, uma mistura de fé, carisma e esperança.

Não decorreu mais que dez minutos, acabou o seu discurso sem interrupção e com a pergunta se eu tinha trabalho para ela.

Respondi que não. Então pediu-me dinheiro porque estava numa situação difícil, depois de me sublinhar a indignidade que é estar desempregada e não conseguir arranjar trabalho.

Não lhe dei nem um cêntimo e vi como se afastava pelo passeio até se perder numa esquina.

Mas o mais ridículo é que me senti dececionado por ela me pedir dinheiro, como se esse gesto tivesse atraiçoado o seu discurso e, por detrás do seu empenhamento apaixonado, afinal só existisse cálculo económico.

Como se fosse mais digno enforcar–se para protestar contra o mundo, ou assumir, anónima e em silêncio, a sua condição de excluída que ninguém deseja conhecer.

A pobreza e o desespero não são estéticos nem elevam o homem da sua condição. Pelo contrário, a pobreza degrada e obriga os seres humanos a fazer o que for necessário para sobreviver.

Aquela mulher era uma vítima e as suas palavras eram a sua forma de ganhar a vida. Qualquer juízo moral é absurdo e arrogante.

Pensamos que somos moralmente superiores por estarmos empoleirados no banco da sacristia ou no degrau do poder, quando nos devia envergonhar a nossa falta de esforço de compreensão e a nossa falta de atitude solidária.

Sonhei com a mulher que me abordou na rua. Vejo-me a dar-lhe todas as notas da carteira e a pedir-lhe perdão. Mas já é demasiado tarde.

Estou consciente de que está condenada. Não tem a menor oportunidade de encontrar uma saída. É um resíduo social, uma sobra do sistema. 

Que a mantém viva nos mínimos obrigatórios prescritos pelas convenções. Invisível, deambula pela cidade e regressa sempre ao outro lado, à periferia. 

Está ferida na sua raiz de pertença à sociedade. Ferida e desamparada, esta missionária errante.


Um encontro perigoso


Sonhei com a mulher que me abordou na rua. Vejo-me a dar-lhe todas as notas da carteira e a pedir-lhe perdão. Mas já é demasiado tarde. Estou consciente de que está condenada


Um destes dias, ao percorrer uma rua de Lisboa numa tarde em que o calor parecia derreter todas as coisas, fui abordado por uma mulher que me fez parar.

Na ânsia de uma sombra que me protegesse da inclemência soalheira que me picava o corpo, a mulher pareceu-me ter uns 30 anos. Vestia a parecer mais nova, uma saia muito curta e uma blusa floreada.

Semicerrava os olhos, parecia ser curta de vista, mas também podia ser pelo sol que lhe retraía o rosto e a impedia de os abrir para nós. Ou talvez pensasse que tudo não valia a pena o esforço para ver mais.

O seu aspeto de ninfa atormentada fez-me lembrar alguém, ao ponto de por um momento quase me ter parecido que a conhecia de algures, mas até hoje não descobri.

A rapariga começou a falar com grande profundidade sobre a desigualdade social e a corrupção dos políticos.

Mencionou a falta de qualidade da classe política e de imediato fez uma reflexão sobre as carências da nossa democracia. Criticou a incapacidade dos governos para resolver os problemas das pessoas simples. 

Arremeteu contra o sem-vergonha do Durão Barroso e os mafiosos da banca, a desagregação da União Europeia e a austeridade dos ricos ainda mais ricos. Lembrou os refugiados a boiar, o medo, a pobreza e o desemprego.

Por último, ainda ironizou que, com tantos pais e avós da democracia, nós, os carecidos de justiça social e económica, só podíamos mesmo ser os bastardos do regime.

Estava fascinado escutando a força profética das suas palavras, sobre as quais a ingenuidade só acentuava a credibilidade do seu discurso. 

Fixei-me no seu cabelo perfeito que lhe chegava até aos ombros e que se mantinha imóvel enquanto agitava as mãos, que desenhavam figuras no ar como a ilustrar a sua narrativa.

Em jovem, admirava os missionários que iam a África conquistar almas, lagos e savanas. “Dr. Livingstone, presumo?” E esta mulher parecia uma enviada por Deus naquela avenida quase deserta de Lisboa, com o sol a queimar-nos a 40 graus.

Era a pessoa mais inadequada no lugar mais absurdo, mas irradiava algo que não é habitual, diferente de todos os que connosco se cruzam a pedinchar palavra, algo difícil de definir, uma mistura de fé, carisma e esperança.

Não decorreu mais que dez minutos, acabou o seu discurso sem interrupção e com a pergunta se eu tinha trabalho para ela.

Respondi que não. Então pediu-me dinheiro porque estava numa situação difícil, depois de me sublinhar a indignidade que é estar desempregada e não conseguir arranjar trabalho.

Não lhe dei nem um cêntimo e vi como se afastava pelo passeio até se perder numa esquina.

Mas o mais ridículo é que me senti dececionado por ela me pedir dinheiro, como se esse gesto tivesse atraiçoado o seu discurso e, por detrás do seu empenhamento apaixonado, afinal só existisse cálculo económico.

Como se fosse mais digno enforcar–se para protestar contra o mundo, ou assumir, anónima e em silêncio, a sua condição de excluída que ninguém deseja conhecer.

A pobreza e o desespero não são estéticos nem elevam o homem da sua condição. Pelo contrário, a pobreza degrada e obriga os seres humanos a fazer o que for necessário para sobreviver.

Aquela mulher era uma vítima e as suas palavras eram a sua forma de ganhar a vida. Qualquer juízo moral é absurdo e arrogante.

Pensamos que somos moralmente superiores por estarmos empoleirados no banco da sacristia ou no degrau do poder, quando nos devia envergonhar a nossa falta de esforço de compreensão e a nossa falta de atitude solidária.

Sonhei com a mulher que me abordou na rua. Vejo-me a dar-lhe todas as notas da carteira e a pedir-lhe perdão. Mas já é demasiado tarde.

Estou consciente de que está condenada. Não tem a menor oportunidade de encontrar uma saída. É um resíduo social, uma sobra do sistema. 

Que a mantém viva nos mínimos obrigatórios prescritos pelas convenções. Invisível, deambula pela cidade e regressa sempre ao outro lado, à periferia. 

Está ferida na sua raiz de pertença à sociedade. Ferida e desamparada, esta missionária errante.